Almas de Porcelana e um coração angolano que canta a sua pátria

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A forte poesia de porcelana de Gociante Patissa chega ao Brasil

gociante
Gociante Patissa/ foto: José Alves-Rede Angola

quando não se tem direito
a ter medo do relento
só deus pode ser pai

Gociante Patissa é um poeta experimentado. Depois de oito livros lançados em seu país de origem, Angola, e também em Portugal, ele chega ao público brasileiro — com uma edição que compila seus principais conjuntos de poemas — pelas mãos da Editora Penalux.

O livro brasileiro é Almas de Porcelana (2016), o que já revela o quanto tem de forte (uma alma não se finda, segundo as religiões) e delicado (porcelana). Um ser que se vê no papel de poeta enfurecido pelos males que assolam seu país – Gociante nasceu em 1978, três anos depois da independência do jugo colonial português, mas a libertação viria a ser seguida por três décadas de guerra civil entre angolanos, findas somente em 2002 – , além de se constituir um autor que resgata a beleza estética no que é feio ou grotesco, ou simplesmente errado, como no poema África mãe Zunqueira:

Esta que se aproxima
carrega uma criança às costas
outra no ventre
uma nuvem húmida rasga-lhe a blusa
lembrando que é hora de parar e amamentar
e lá vai ela seguindo o itinerário que a barriga traçar
gestora de um ovário condenado a não parar
porque é património social
penhora o útero na luta contra a taxa de mortalidade
[…]

Como irmãos é um belo poema que versa sobre a solidariedade, num país em que as fronteiras demarcadas pelos imperialistas não corresponde às identidades culturas em jogo. Em Angola, no processo de libertação, houve uma a aglutinação de vários reinos, que estão sujeitos ao majoritariamente etnolinguístico de origem Bantu. Gociante pertence ao grupo Ovimbundu, que representa cerca de um terço da população angolana, cuja língua, o Umbundu, predomina em seis das 18 províncias.

Almas de porcelanaO mais comovente dos poemas certamente é Obras do tempo, que trata da mutilação de corpos causada pelas minas terrestres das guerras que assolaram o país: “Quando perdi a mão/ condenaram-me a ter saudades da saudação/ de acenar e apertar a mão/ as ruas esqueceram-se do meu nome/ por tudo isso pergunto irmãos/ quantos mais se amputarão/ quantas minhas ainda afinam vozes/ para a hora da explosão?/ até quando as armadilhas?/ caramba pá.”

Esse final: “caramba pá” é um pedido de socorro, um grito rouco que o leitor aprende a ler nos poemas de Patissa ao longo do livro. Trata-se de um livro grave. O leitor não é convidado a sorrir. Porém, mesmo que não sorria por conta da falta de um recurso estilístico mais usual, com imagens e cores bonitas, por exemplo, o sorriso aflora nele ao ler a verdade. E será que dizer a verdade é fazer arte?

Certamente essa é uma longa discussão, mas é fato que Patissa presenteia a nós, brasileiros, com poemas breves e densos, apesar de um ou outro se deixar flutuar.

Leiamos o primeiro poema de Almas de porcelana:


Tríade da pedra do tempo e da obra

Na madrugada, acelera-se a pulsação
no movimento irreversível do tempo
os fantasmas da responsabilidade cantam
ecoam as lembranças
é a despedida do repouso

De dia o suor espalha-se
pelos poros afora
na orquestra de quem trabalha
estradas rasgam-se na curva dos seios
na nudez do arco-íris
a vida é infindável caminhada

De noite o corpo exausto cobra pelo descanso
os olhos carregados enganam as almas
que adormecem masturbadas

Ontem foi partida
hoje é caminhada
e o amanhã uma promessa ainda.

Nota-se, aqui, como o autor vaga de uma imagem a outra de maneira simples, quase prosaica. O amanhã pode ser apenas uma promessa, mas neste agora “o suor espalha-se”, “estradas rasgam-se na curva dos seios” e o arco-íris tem “nudez”. Boas metáforas, muito melhores do que uma ou outra que se encontram no livro com menos mestria.

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