As incertezas do mundo pós-aniversário

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O romance O Mundo Pós-aniversário, de Lionel Shriver, transforma um drama banal em uma análise da eterna insatisfação feminina e humana

Lionel Shriver
Lionel Shriver

Irina é uma mulher na faixa dos 40 anos, ilustradora de livros infantis. Ela mora em Londres com seu companheiro, Lawrence, com quem mantém um relacionamento estável de quase dez anos. Lawrence é pesquisador de um instituto de estudos estratégicos; um homem sério, muito culto e preocupado com Irina. O casal de americanos torna-se amigo de outro casal, de ingleses: Jude, editora com quem Irina trabalha, e seu marido Ramsey, famoso jogador de sinuca, esporte aparentemente bastante popular na Inglaterra. Os quatro se encontram a cada ano para comemorar o aniversário de Ramsey. Em uma dessas datas, quando Ramsey está separado de Jude e Lawrence viajando a trabalho, Irina vai sozinha ao jantar com o amigo. O que tinha tudo para ser um desastre, já que os dois quase não conversavam anteriormente, acaba se tornando uma noite bastante divertida, com direito a uma esticadinha para um baseado na casa do jogador de sinuca. Irina percebe-se subitamente atraída por aquele homem e sente vontade de beijá-lo. A decisão de se aproximar ou se afastar de seu desejo naquele momento terá consequências que podem mudar o percurso de vida da mulher drasticamente.

Essa é a premissa de O Mundo Pós-aniversário, romance da escritora americana Lionel Shriver, autora do aclamado Precisamos Falar sobre o Kevin. A obra não consegue superar a intensidade dramática do sucesso anterior, porém mantém a qualidade de escrita e de construção de personagem característica da autora. O narrador em terceira pessoa, que acompanha a perspectiva da protagonista Irina, não poupa em tiradas ácidas e realistas, como “Quando o que você faz não se coaduna com quem você pensa que é, com certeza deve haver algo errado (e provavelmente otimista) a respeito de quem você pensa ser”. O foco, mais uma vez, e como quase sempre na literatura, acaba sendo os relacionamentos humanos e os pequenos dramas individuais.

Do ponto de vista da construção narratológica, a composição do romance é bastante interessante: a partir do segundo capítulo, o leitor tem acesso a duas versões, baseadas na escolha feita por Irina em beijar ou não Ramsey. Na primeira versão, ela se afastou a tempo e manteve seu casamento sólido com Lawrence. Na segunda, ela resolveu se entregar a esse novo sentimento e acabou vivendo uma grande paixão com Ramsey. Os fatos do enredo são muito bem amarrados e entremeados por acontecimentos históricos, como a morte da princesa Diana e o atentado às Torres Gêmeas. As variações de cada versão consistem na situação de vida de Irina: com Lawrence, ela mundoposaniversariomantém sua rotina tranquila e um tanto tediosa, o que a deixa segura e apta ao trabalho, porém inquieta com o sentimento de acomodação; com Ramsey, vive um primeiro momento de lua-de-mel, seguido por brigas turbulentas, devidas à personalidade enérgica do jogador, que a desestabilizam e prejudicam sua vida profissional e familiar.

Ambas as escolhas carregam seus prós e contras. Em nenhuma delas, a personagem se encontra plenamente satisfeita: ela sempre se pergunta o que teria acontecido caso tivesse tomado o outro caminho e idealiza aquela versão não vivida. No último capítulo, as duas pontas se atam, num desfecho bastante coerente e aberto à reflexão. Uma das possibilidades interpretativas é: não importa qual escolha fazemos, jamais nos realizaremos plenamente e, no fundo, vamos terminar no mesmo ponto.

A crise da protagonista guia todo o enredo. Em muitos aspectos, Irina pode ser comparada a Eva, de Precisamos Falar sobre o Kevin: ambas possuem origem estrangeira – a de Eva, armênia, a de Irina, russa –, o que faz com que se sintam quase sempre deslocadas em seu contexto – o fato de Irina se erradicar em Londres agrava ainda mais essa questão; elas são dependentes emocionalmente de um homem – Eva engravida para tentar satisfazer ao desejo de paternidade de seu marido, enquanto Irina se divide entre dois homens de personalidades diversas e define seu ritmo de trabalho e seus outros relacionamentos de acordo com a pessoa com quem vive; e, ainda, as duas se deparam com decisões difíceis que mudarão sua vida – Eva, a de ter um filho, e Irina, a de engatar ou não um novo relacionamento amoroso. A grande diferença é que as consequências da ação de Irina são bem menos graves do que as de Eva, cujo cotidiano é completamente devastado após o nascimento do psicopata Kevin.

Irina vive um drama burguês, atrelado a suas expectativas e inseguranças: em ambas as versões, possui certo conforto financeiro e emocional, já que os dois homens, cada um a seu modo, são interessantes e apaixonados por ela. Ela tenta definir sua vida por seus relacionamentos amorosos e não se permite espaço para entrar em contato com sua própria personalidade, passando de um relacionamento a outro sem pausa por puro impulso ou insistindo numa união em crise por mera comodidade. Suas críticas contundentes ao movimento feminista, em vários momentos do livro, soam como um rancor voltado, no fundo, contra sua própria insegurança, sua incapacidade de encarar a realidade de suas escolhas e seu medo de ter que lidar com a solidão, situações ainda mais agravantes para uma mulher, de quem a sociedade cobra sempre mais, não importa o que decida – a estabilidade ou a aventura, a carreira ou a família, a individualidade ou a maternidade, etc.

Portanto, a complexidade de O Mundo Pós-aniversário consiste em transformar um drama cotidiano, banal, acompanhado por fatos históricos de grande proporção, em uma análise profunda da eterna insatisfação feminina/humana com as escolhas exercidas ao longo da vida, que sempre nos surpreende com suas ironias. Enquanto o mundo gira, impiedosamente, Irina permanece se perguntando por aquele “e se”.

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