Asa de Sereia, de Luís Henrique Pellanda – uma viagem por Curitiba

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No livro de Luís Henrique Pellanda: “Uma vez a cidade reconhecida e escrita, podemos nos encontrar ou perder em suas quadras, correr o risco de encontrar e sermos encontrados por alguma situação que nos tire do silêncio enquanto procuramos uma nota velha na calçada”.

asa de sereia [2]
Luís Henrique Pellanda / foto: Arquipélago
Um homem anda pelas ruas de Curitiba, incógnito em meio à multidão, com passos apressados e palavras breves. Ele saiu de casa para as tarefas cotidianas sem qualquer pretensão extraordinária, é apenas outro dia. A calçada é quase uma extensão dos pés, tamanho o acúmulo dos passos, e se as construções fossem pessoas o cumprimentariam com um cabeceio bovino e voltariam os olhos para as ruas.

Ah, as ruas. Os caminhos guardam suas estranhezas, mesmo quando conhecidos. São gritos a perfurar o escasso silêncio do bairro, pessoas que não estavam na praça central ontem e hoje fazem dela um palco, esbarrões entre dois ou mais indivíduos desconhecidos entre si a compor uma involuntária melodia matinal, e uma série de situações de quem passa em branco. O homem mencionado não participa delas, tampouco as caça ou evita, apenas as observa; e sabe que não há uma fuga real, é apenas levado por uma Asa de Sereia, nome do segundo livro de crônicas de Luís Henrique Pellanda.

E o leitor ganha um assento nesta viagem pelas múltiplas faces de Curitiba, metrópole cuja fama cinzenta e introvertida esconde todo tipo de ruído.  “Um entra na Pracinha do Amor pela esquina da Ébano [Pereira] com a Cruz Machado; o outro, pela escada da Saldanha [Marinho]. Partem de cantos opostos, feito lutadores no ringue. […] já os vi antes, nunca juntos. Atrás da banquinha fechada, sentado na madeira úmida, tão sóbrio, quem sou eu para atrapalhar este encontro?”. Esta abertura de Excêntricos é uma pista, pois uma vez lendo nos tornamos testemunhas. Podemos fazer como o autor, pedir licença ao mundo real e fingir que não estamos lá. E na tentativa de não presenciar um evento desse porte, levar um indiscreto Cancela Tudo (nome de outra crônica) de um homem-onça que corre até chegar ao companheiro e anunciar a ordem do dia, não sem antes quase atropelar alguns passantes e motocicletas estacionadas no caminho – e desviar a atenção de alguns passantes do habitual com o qual lidam.

O retrato de Curitiba neste livro é uma soma de particularidades dispostas a surpreender, o espanto e o riso figuram entre reações a elas.  A esquina por onde passamos ontem pode ter um brilho diferente, não tanto pela (indiferença da) luz, mas pelos que nela estão hoje com suas vozes e suas asas a bater, prestes a demarcar território com passos trôpegos enquanto a metrópole finge não os abrigar. São pessoas cujas ‘estranhezas’ estão perto de nós, sem se incomodarem se as entendemos. Pois elas são Meus vizinhos, seus amigos, teus irmãos e o diabo; nos tornamos plateia e figurino, sem direito a declinar do convite. Em um dia de trégua, a caminhada talvez não lhe pregue surpresas, mas cuidar da casa antes de sair nunca é demais.

“Mora no Centro, no nono andar. Ao sair, mesmo em dia de céu limpo, sempre fecha as janelas: – Vai que, na minha ausência, entra um urubu?” (Meus vizinhos, seus amigos, teus irmãos e o diabo). Se não houver sinal de urubus continuamos a dividir a cidade apenas com humanos, enquanto lemos as faces de Curitiba escritas em linguagem poética, com doses de ironia, sofisticação e acolhimento.

“O cronista, no fundo, é um inocente. Muitas vezes, é apenas aquele cara que, dia sim dia não, tem a sorte de achar dinheiro na rua. Parece uma benção, não nego. Para ele, qualquer pracinha é um garimpo de narrativas remodeláveis. Ah, um trabalho ótimo, faz bem para as pernas, o ar é fresco. Mas nem sempre as moedas encontradas estarão limpas. Você deixaria de embolsá-las só por que não topa uma sujeira?”

asa de sereia [1]

Neste trecho de Sabiá enterrado Vivo, fica declarada a sina do cronista. Uma vez a cidade reconhecida e escrita, podemos nos encontrar ou perder em suas quadras, correr o risco de encontrar e sermos encontrados por alguma situação que nos tire do silêncio enquanto procuramos uma nota velha na calçada. Para depois ouvirmos outro bater de asas.

Asa de Sereia
Luís Henrique Pellanda
Arquipélago Editorial
2013
208 páginas

 

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