As baratas de Kafka e de Clarice

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Por trás da barata que aparece nas obras de Kafka e Clarice, existe toda uma simbologia.

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A barata é um inseto nojento, asqueroso e detestável. Mas, como nem só de borboletas vive a literatura, esse bichinho desagradável já serviu de inspiração para alguns escritores consagrados. Ele é praticamente o protagonista em A metamorfose e A paixão segundo G.H. Vamos, então, vamos tentar entender a sua simbologia nas duas obras.

É bastante conhecido o começo de A metamorfose: a personagem Gregor Sansa acorda transformado em barata. Na verdade, o inseto em que ele se metamorfoseia não é especificado; a barata foi eleita como representação nas versões visuais pela semelhança da descrição. Daí já percebemos como é forte a associação popular da barata a um dos maiores graus de asquerosidade possíveis. Depois de virar inseto, Gregor passa a ser discriminado e segregado pela própria família, pois se torna motivo de vergonha e repulsa. Só então ele consegue perceber o verdadeiro caráter das pessoas com quem convivia, por quem acreditava ser amado e compreendido. A metamorfose, nesse caso, pode ser interpretada como uma metáfora para uma doença ou qualquer outra condição física/emocional que não fosse bem aceita pela sociedade, até como uma homossexualidade, por exemplo. E a visão de mundo kafkaniana é predominantemente negativa. A sociedade esmaga o homem, assim como nós esmagamos as baratas.

Já Lispector apresenta um lado diferente da questão. Em A paixão segundo G.H., a personagem-título, enquanto arruma o quarto da empregada que se demitiu,  se depara com uma barata saindo de dentro do armário e tem uma daquelas famosas (e maravilhosas) epifanias claricianas. Ela começa a refletir sobre toda sua vida e analisar seus erros e sua personalidade, sentindo que uma grande transformação está se fazendo dentro de si. Quem é G.H., além do nome escrito nas valises? Por que ela tem tanto medo da barata, um ser vivo como ela, que respira, se locomove e morre como ela? O que há de tão infernal e divino nesse ser repugnante? O que há de tão proibido e intocável nesse ser fascinante? G.H. mata a barata ao imprensá-la com a porta do armário. Ela observa longamente a barata dar seus últimos suspiros enquanto a gosma branca de dentro dela jorra e vai ficando amarelada. Então, extasiada, atraída pelo inseto, ela se aproxima e, num louco devaneio, suga um pouco da gosma. Eu sei, a cena é intragável. Mas é melhor tentar pensar pelo viés da metáfora. A barata representa a parte incômoda da vida, que precisa ser encarada. Ela é aquele medo que nos paralisa, nos impede de criar asas. G.H. aceita, enfim, o mistério de viver, adquirindo a sensação de estar mais madura, mais preparada para os desafios diários e em uma maior sintonia com o mundo após a sua jornada. Aqui, portanto, há um desfecho que pode ser considerado positivo. A barata é um mal necessário.

Apesar de distintas em sua essência, as utilizações do inseto pelos dois autores acontecem no mesmo contexto de transgressão. Transformar-se em barata, de forma literal ou simbólica, é uma punição, uma missão ou uma bênção inevitável. Assumir a existência da barata ou assumir-se barata tem um preço alto, que é preciso pagar. Afinal, todo mundo tem o seu lado “barata”, com o qual é obrigado a lidar, de alguma forma, em algum momento.

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