A surrealidade da guerra em “Vaca de Nariz Sutil”, de Campos de Carvalho

0
A surrealidade da guerra em “Vaca de Nariz Sutil”, de Campos de Carvalho
O escritor Campos de Carvalho. [FSP-Mais-04.06.95]***

Campos de Carvalho disse em entrevista que escreveu Vaca de nariz sutil  “aos prantos”.

Campos de Carvalho
O escritor Campos de Carvalho / FSP-Mais-04.06.95

Caçula de uma família relativamente grande para os padrões atuais – eram seis irmãos – Walter Campos de Carvalho, o escritor surrealista, nasceu em Uberaba, Minas Gerais, em 1 de novembro de 1916, tendo, no entanto, concluído o bacharelado em Direito em São Paulo, em 1938. Trabalhou na Procuradoria Geral do Estado até os 53 anos, quando se aposentou. Em 1950, entretanto, já se havia mudado com a esposa para o Rio de Janeiro a trabalho; o retorno ao estado com nome de santo só viria no fim dos anos 1980, onde por fim viria a falecer em 10 de abril de 1998.

Sendo este o primeiro escritor não contemporâneo que resenho, fui pesquisar sobre Campos de Carvalho (outras resenhas aqui!). Como fiz a pesquisa após a leitura do livro em questão, confesso que fiquei bem surpreso com a pouca informação encontrada a respeito tanto do autor de uma obra de tal porte quanto do contexto social e literário em que estava inserido. Com a exceção de uma entrevista realizada com o próprio, a pequena biografia acima resume bem a quantidade de dados que consegui obter – e a maior parte no livro resenhado mesmo.

Sobre Vaca de nariz sutil, de Campos de Carvalho

Vaca de nariz sutil, de Campos de CarvalhoVaca de nariz sutil, publicado originalmente em 1961, é um livro fino (94 páginas) e denso, de capa dura preta com uma sobrecapa verde, embora o tom negro da capa faça mais sentido (se bem que fazer sentido não era uma grande preocupação do autor, não é mesmo?), reeditado recentemente – estando em sua 5ª edição – pela Autêntica; a 4ª edição foi lançada pela José Olympio em 2008 e está fora de linha. A editora Autêntica está, portanto, realizando um necessário e merecido resgate das obras desse autor sensacional. Além desta, também já reeditou A lua vem da Ásia, seu romance anterior, em 2016, e pretende ainda republicar A chuva imóvel e O púcaro búlgaro.

Bem, mas vamos ao romance (?) em questão: com um título inspirado em um quadro do pintor surrealista Jean Dubuffet, Vaca de nariz sutil narra, ou descreve, em primeira pessoa as visões de um veterano de guerra condecorado – ou, como ele sarcasticamente se intitula, herói – sem nome, desiludido e perdido na vida. Ele divide um quarto de pensão com um surdo-mudo, Aristides, dois “antípodas a dois metros de distância”, “simples hóspedes provisórios de uma pensão provisória neste mundo provisório”, e acaba se identificando e se envolvendo com Valquíria, a jovem filha de um zelador residente no cemitério onde trabalha.

Este é um daqueles livros que parecem escritos ou lidos numa espécie de sonambulismo hiperatento, em que se bebe ávido cada palavra sabendo que elas não foram postas no papel para serem esquadrinhadas pelos óculos da lógica tradicional, mas que, ao mesmo tempo, acabam se mostrando mais lúcidas e reveladoras do que talvez fosse alcançado com a tal racionalidade “dentro da caixa”.

Citações de Vaca de nariz sutil, de Campos de Carvalho

O livro possui tiradas ácidas como:

“Às vezes copulava-se na própria terra, um buraco cavado com os dedos, o indicador ou o médio, os dois, conforme o diâmetro; o diabo era a sensação de incesto que não se podia evitar: a tal de pátria-mãe.”

ou:

“(…) você aí: que é a alma do canhão? Essa pergunta o capelão é quem deve responder, não sei nem de minha alma e me proibiram de saber, vamos falar de coisas sérias: quantos mortos são necessários para se chegar a herói?”

o autor consegue, com um humor negro e altamente irônico, um nonsense bem particular, iluminar muito do pobre de nossa sociedade, um podre cuja putrefação só aumenta à medida que é evitado.

Campos de Carvalho é certamente atual e precisa, merece, demais ser lido, agora talvez mais do que nunca.

Não há posts para exibir