Conto: Amparo

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amparo

Amparo tinha o olho maior que a barriga. De família italiana, tradicionalíssima, lia salmo aos domingos no altar e aos sábados, ensaiava o coral das crianças, logo depois da reunião da nova eucaristia. Tinha os cabelos cacheados, usava óculos, calça de moletom azul marinho e no pescoço, um escapulário de Nossa Senhora da Rosa Mistica, que tinha ganhado de aniversário do avô, falecido no mesmo ano do presente. Para ela, família era a base de tudo. Principalmente aos domingos, quando via a mãe coando macarrão e apurando o molho. Gorda, tinha um coração imenso, maior que ela. Era queridíssima na comunidade. Arrumava excursão pra Aparecida, fazia vigília e sabia de cor o coro em Pentecostes. Amparo, era do jeito que Deus gosta. Um dia, entre cânticos e choro de memória, lembrou-se do avô. Tinha um apresso imenso pelo velho e a perda, era uma coisa que ainda não digeria. Comia. Abria a geladeira e se empaçocava de feijão gelado com azeite. Era assim que Amparo degustava a tristeza da morte. E como boa cristã, tinha a culpa do excesso. O medo da gula.

Se trancava no quarto pra leitura. Era de poucas palavras. Só se soltava na igreja. E se soltava bem pouco na verdade. As meninas, morriam de vergonha dela. Afinal, Amparo exalava um sudorese ímpar. Brincavam:

– Dá pra saber que é Amparo da esquina. Sente só. Cheira o ar.

Riam escondidas e vez ou outra faziam questão de demonstrar pra menina a brincadeira do azedo.

Amparo, nem percebia. Era tão humilde de si mesma que imagina. Nem de longe pensava que era fantoche. Nos ensaios do teatrinho de Páscoa, uma vez, outra ralhou:

– Amparo podia ser o coelho!

Ela achava fofo. Imagina? Ser o coelho? Enfim. Apresentada a gorda de fé vamos ao que realmente importa:

Era uma quinta feira, o sol se escondia e Amparo resolveu bater na sacristia. Queria se confessar. Tinha devorado na noite anterior dois potes cheios de azeitonas e vomitado tudo no travesseiro.

Precisava do perdão. Afinal era quinta. Já já seria domingo e a ansiedade de ver o macarrão coando matava a menina.

– Padre?

– Pode entrar, Amparo.

Sentou-se numa banqueta e lá despejou todo amargo da barriga. Chorou litros. Disse das azeitonas, da saudade do avô, que dormiu antes do Salve Rainha…

O padre, que tinha um fardo de paciência com a menina foi categórico:

– Você precisa namorar.

– Como?

– Seu problema é falta de alguém. Uma menina (procurando as palavras) bonita assim, não pode chorar por nada!

– Mas como por nada, padre? Ontem mesmo, veja só. Ontem mesmo comi dois potes de azeitonas. Seguidos. Dois potes seguidos.

– Sua fome é necessidade de um amor. Tenho certeza que é.

A menina saiu pensativa. Chegou em casa e trancou-se. Devorou uns quatro ou cinco pacotes de biscoitos lendo a Bíblia. Decidiu. Decidiu durante a segunda Carta a Coríntios que daria razão ao conselho do padre.

– Se minha fome é de amor. Amarei.

Passou a mão no telefone e discou para Cecília.

Cecília era a única amiga de Amparo. Na verdade, tinha dó.

Era magra, olhos claros, sardinhas no rosto e um leve sotaque do Sul, que imitava da avó que era de lá.

– Ceci! Decidi que quero amar.

– Oi?

– Amar, Ceci! Quero alguém.

– Mas tu? Logo tu? O que foi que te deu?

– O padre disse que meu mal é falta de alguém. Logo, desconto na comida e na saudade do vovô.

– Lá vem você e seus azeites!

Ao ouvir a palavra azeite, deu em Amparo uma fominha daquelas.

– Pois bem. Decidi que quero alguém e tu, vai me ajudar.

Soou uma penitência. Ceci andava agora a ouvir relatos de pseudas paixões da gordinha.

– Olha aquele. Aquele ali, ó!

Ceci não dizia nada. Mas era nítido que ninguém se interessaria por Amparo. Embora mais arrumada por conta de um novo risco de vaidade, mesmo tomada banho, ela cheirava daquele jeito.

– Amparo, passa um perfuminho. Um tiquinho só.

– Não posso, Ceci. Sou alérgica, lembra?

E isso correu o que? Uns três ou quatro meses? Ceci, ia religiosamente todos os sábados depois do ensaio para a casa de Amparo e lá ficavam. Rodeadas de pacotes de biscoitos, salmos e ilusões da pequena obesa.

– Olha, eu acho que o carinha do dizimo gosta de mim.

– Como assim, Amparo?

– Dei os vinte da cartilha e ele me sorriu tão lindo. Pegou na minha mão e me disse um “Deus te abençoe” que nossa. Me arrepiou inteira.

Ceci não aguentava mais. O que pegava seus sábados, ganhou a semana. Amparo ligava até no trabalho da menina:

– Escuta, Ceci. Vovó me deu uma blusinha que nossa. Fiquei linda. Ta um tiquinho apertada, só. Mas nossa, um mimo!

– Sério, Amparo?

– Seríssimo. Vou pagar o dizimo com ela, quem sabe não desencalho?

Brincava Amparo que agora, menos tímida e ainda cheirando azedo, se sentia outra.

O fato do padre ter caçado palavras para dizer “bonita” a fez quase uma Imaculada Conceição.

Na segunda feira Amparo ligou pra Ceci pra contar que comprou batom. Na terça, que comprou um sapato. Na quarta, que o mocinho do dizimo deu carona até a porta de casa por conta da chuva e que nossa, deu um outro “Deus abençoe” que mexeu com a menina. Na quinta ligou chorando que descobriu que não entrava mais num vestido. Na sexta ligou dizendo que cortou o cabelo. No sábado, Ceci se escondeu atrás da gruta de Fátima pra que Amparo não a visse. No domingo, ás oito da manhã, toca a campainha:

– Quem é?

– Abre. Sou eu Ceci!

– AMPARO?

Segurou um choro honesto encostada na parede.

– Que foi?

– Vim te pegar pra ir na missa.

– Não vou!

– Como que não?

– Não indo, oras!

Fez-se um silêncio monstruoso. Amparo, aos poucos desabafou:

– Sabe o que é? Eu preciso que você abra a porta. Um pouco só. Juro. Pra te dar um abraço e ir a missa.

– Mas eu não vou pra missa!

– É domingo de ramos, Ceci!

– Dane-se!

Ceci pensou alguns segundos e lhe veio uma angústia daquelas. Se sentiu um monstro.

– Está bem. Espera. Vou pegar a chave.

Foi o tempo de Ceci passar a chave no ferrolho. Amparo pulou na menina feito Padre em coroinha de treze. Beijou a amiga. Um beijo babado, emergencial. Cheio de apertos e suor.

– Bebeu, foi? Nojenta! Caducou de vez?

– Eu só queria que você me notasse. Só isso, só. Entende, Ceci?

Como por sua causa. Minha fome é tua.

– Maluca!

– Quando o padre disse que desconto comendo, tudo fez sentido. É você que eu quero. Como por não te ter.

A menina, que pesava o que? Seus cento e cinquenta quilos, pulou em Ceci rumo ao sofá. Prensou a menina no braço e lascou uma baciada de afeto. E lá estava Amparo, entre cânticos e choros de memória, matando a fome que há tempos escondia na geladeira.

***

Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

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