Conto: As janelas de Luiz

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Ilustração de Mayara Nardo

Eram quatro retângulos de bordas marrons, as janelas. Dividiam-se formando uma cruz com os espaços brancos da parede, e juntas formavam um retângulo maior. Todas as quatro janelas possuíam um sistema de trava do lado direito. Ninguém do escritório entendia muito bem, mas sempre eram abertas no calor e fechadas no frio.

Na verdade, Luiz era o responsável por abrir e fechar as janelas. Nunca ninguém se questionou por que, tínhamos em vista que era por sentar próximo às janelas. Não me lembro de ter visto outra pessoa mexendo nelas. Olhando agora, que o pior já passou, penso que, na verdade, os vidros costumavam ser bem sujos.

Uma vez, no fumódromo, perguntei para Luiz:

– Tem fogo, cara?

Ao que ele recuou dois passos e ficou me encarando com as sobrancelhas arqueadas. Parecia indeciso entre uma expressão assustada e raivosa. Lembro que o Fontoura me esticou uma caixa de fósforos. Lembro também de ter olhado para as mãos de Luiz e perceber que ele estava segurando um cigarro apagado. Pensei em oferecer fogo. Pensei também que não havia visto nunca ninguém conversando com ele. Enquanto acabava meu cigarro, Fontoura insistia em conversar. Eu só queria entender por que Luiz permanecia com as sobrancelhas arqueadas, os braços cruzados e os olhos em mim. Não conseguia definir sua expressão como ameaça. Não conseguia definir sua expressão.

Éramos doze no escritório. Isso sem contar a tia da limpeza, que circulava por todo o prédio. Mantinha, na época, uma amizade razoável com pelo menos quatro pessoas do local e optei por perguntar para elas sobre Luiz. O que ele fazia? Com o que ele trabalhava? Alguém já tinha falado com ele?

Uma vez falamos de futebol. Ele é gremista pra caralho!

– Tem certeza?

– Claro! O Luizinho que senta perto da Valéria?

– Não sei. Tem uma Valéria?

– Tem. Não? A senhora de óculos, que senta perto do armário.

– A Valquíria, velho. Tu tá viajando.

Éramos doze, e a maioria nem se conhecia. O Luiz-gremista-pra-caralho a que Augusto se referia, era, na verdade, o Edu.

A vista do prédio é razoavelmente bonita. Metade da paisagem é composta por prédios antigos. Realmente antigos. Todos estão quase sem pintura, como se a água da chuva tivesse lavado a tinta. Dois deles tem um aspecto rosado, os demais são cinza e muito parecidos. É possível diferenciar e se distrair com os edifícios por meio das janelas e varandas. Umas oito são tomadas por tantas plantas quanto é possível ter. Um apartamento do décimo andar de um dos prédios meio rosados tem tantas plantas que invade a varanda abaixo da sua. Algo que não deve incomodar a inquilina do apartamento inferior, que tem tantos gatos quanto o vizinho de cima tem plantas. Vi inúmeras vezes os gatos usando as folhagens como cipó. É incrível como os gatos são escaladores estratégicos. A outra metade da vista é tomada pela imponência marrom do Rio Guaíba.

Isso tudo vi do fumódromo, que é posicionado exatamente acima de nossa sala. Porque ninguém se aproximava das janelas de Luiz. Acho que um medo foi sendo instituído subliminarmente, e quando nos demos conta, não sabíamos mais o que fazer. Sim, tentei. Abordei o coordenador direto de nosso setor, perguntei sobre Luiz:

– Não sei. Quando assumi, ele já estava aí.

– E o que ele faz?

– Acho que é o responsável pela contabilidade, não é?

– Não. Eu sou o responsável pela contabilidade!

– Então não sei.

Aparentemente eu era o único incomodado com o mistério de Luiz. Isso até tudo acontecer.

Havia sido um inverno brando. Todos esperavam mais do frio, e só lá pelo fim de agosto chegou. Estávamos passando por nossa primeira temperatura abaixo de dez graus quando Luiz vagarosamente se  levantou da cadeira e colocou a palma das mãos no vidro empoeirado da janela mais próxima. Meus olhos estavam grudados nele quando, com a tensão estabelecida entre suas palmas e o vidro, arrastou a janela pra esquerda, abrindo completamente. O vento que entrou na sala fez com que todos adotassem a mesma expressão de Luiz no dia em que lhe perguntei se tinha fogo:

– Tá louco, cara? Fecha isso aí!, bradou Edu do outro canto da sala.

Luiz recuou dois passos, de forma a encostar na parte fechada da janela. Colocou uma mão sobre a outra e as duas em cima do peito, como se tivesse sido atingido por algo cortante. Então, sacudiu a cabeça, bateu com as mãos do lado das pernas, como se tirasse poeira das calças, e abriu a segunda das janelas.

Edu fez menção de levantar, mas Fontoura fez sinal com as mãos para que se acalmasse. Que era melhor deixar rolar. A sala toda estava parada encarando-o. Enquanto ele correspondia ao olhar de todos, um por um, abriu a terceira e a quarta janela. Até aí tudo bem. Estranho mesmo foi quando Luiz começou a uivar. Foi a tia da limpeza, que estava chegando para cumprir seu turno, quem saiu gritando:

– É surto de psicose! É surto de psicose!

Estávamos confusos e ficamos muito mais. Ela correu na direção de Luiz com a vassoura erguida na altura do peito. Era o simulacro de uma guerreira medieval. Quando chegou a ponto de acertá-lo, o homem deu um leve passo e jogou o corpo para o lado. A vassoura acertou e quebrou o vidro da janela mais baixa.

Depois Luiz foi demitido. A Dona Jandira ainda é a tia da limpeza, e só aprendemos o nome dela depois do ocorrido, pois houve uma sindicância administrativa interna em que todos precisaram prestar depoimento e explicar o ocorrido. A janela foi arrumada só no início do mês seguinte. O que não foi problema, porque o frio não durou muito tempo.

Às vezes converso com a Dona Jandira e pergunto o que aconteceu na opinião dela. Sempre responde:

– Aquele dali tinha sangue negro, coração fechado, alma de vigário!

Diz ter muita raiva da situação. A administração quis cobrar dela pelo vidro e esse foi um dos principais motivos da abertura da sindicância. No fim, descontaram alguns reais de cada um de nós. Aceitamos numa boa.

A mesa de Luiz ficou vazia por muito tempo. Não viram necessidade de contratar ninguém, pois não sabiam dizer o que precisavam suprir.

Um estagiário foi contratado esses dias. Todos acharam graça quando vimos que iria se sentar à mesa que era de Luiz.

Ninguém esperava quando o estagiário perguntou:

– Posso fechar todas essas janelas?

As janelas estavam todas fechadas, então, não entendemos.

– Quais janelas?, questionei de volta.

– Cara, tem muitas janelas abertas aqui.

Todos se entreolharam, ansiosos.

– No editor de textos, cara! Quem é que usava esse computador? Tem mais de duas mil janelas do editor de texto abertas. E em branco!

Ninguém achou graça. Ficamos com medo que o chefe implicasse por ninguém ter desligado o computador de Luiz.

– Pode fechar. Tu pode até reiniciar o computador se quiser.

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