Conto: Pequena transgressão automática

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Antes que você leia este conto, saiba que ele é a primeira contribuição de Jairo Echeverri García para o Homo Literatus. Jairo é colombiano, e editor do site Cuento Colectivo, onde são publicados contos finalizados e exercícios criativos para a construção de outros contos.

A história que se segue surgiu de um desafio, escrever um conto baseado na obra de Salvador de Dali. Jairo Echeverri García escreveu Pequeña Transgression automática, cuja tradução para o português foi realizada pelo Homo Literatus.

Nota do Editor 

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Pequena transgressão automática

 

Depois de um longo dia de trabalho, Augusto se sentou na cadeira de balanço de seu estúdio, a fumar um cigarro e relaxar um pouco. Vez ou outra, contemplava o cartaz de uma pintura de seu artista preferido, Salvador Dalí, colado na parede do estúdio, justo em frente de sua cadeira. O cartaz da pintura informava que a mesma havia sido criada por Dalí em 1935 e levava o nome de “Mulher com cabeça de flores”.

Enquanto pensava na incrível ilusão de tridimensionalidade da pintura, mais as sombras e a predominância do verde, notou como de repente a mulher da cabeça de flores, protagonista na obra, começou a mover-se lentamente, como se fizesse uma espécie de dança, mas não alterando muito sua posição original. De maneira gradual, os movimentos da mulher eram mais marcados, a ponto de chegar a uma dança muito sedutora, quase hipnótica, na qual fazia uso completo de todo o seu corpo. Foi nesse momento que Augusto sentiu um calafrio que se originou em sua espinha e explodiu em sua cabeça com três vezes mais poder.

As cores do cartaz se tornaram mais reais e a mulher com a cabeça cheia de flores, através de sinais feitos por suas mãos que se encaixavam na harmonia de seu movimento, chamava Augusto. Em seguida, Augusto levantou-se da cadeira e parou justo em frente ao cartaz, este ocupava agora seu ângulo de visão completamente. Nesse instante a mulher com a cabeça de flores voltou à sua posição original. “O que aconteceu?”, perguntou-se Augusto, sem tirar os olhos da sedutora mulher. Decepcionado, deu meia volta com a intenção de voltar à sua cadeira, quando a protagonista da pintura tirou sua mão direita do cartaz e de um puxão trouxe Augusto para dentro de seu mundo.

Augusto olhou ao seu redor e não podia acreditar, estava em um dos desertos de Dalí. Procurou a mulher com a cabeça de flores, que estava a aproximadamente vinte metros dele. A mulher continuava dançando e ao mesmo tempo pondo-se cada vez mais longe de Augusto, que estava assombrado com a graça de seus movimentos e de sua flexibilidade. De repente, sentiu que alguém tocou seu ombro. Deu meia volta e era uma mulher com o cabelo preto, olhos azuis brilhantes e um rosto a sorrir, que a Augusto pareceu belo. Ao detalhar a roupa desta mulher recordou que na pintura de Dalí “Mulher com cabeça de flores” há outra mulher que detém um papel diferente da protagonista, porém, o rosto da mulher não é visível na pintura, e por isso não a havia reconhecido. A mulher dos olhos azuis esticou seu braço, entregando a o papel que detinha, Augusto agarrou o papel e leu: “Supera teus medos e conquista teus sonhos. Não a deixes ir”.

Ao buscar a mulher com a cabeça cheia de flores, Augusto notou que ela estava muito mais longe, a quase um quilômetro, dançando e movendo-se em direção da cabeça gigante de leão presente no cenário. Augusto começou a correr com toda a sua força em direção da mulher com a cabeça de flores, que já estava entrando na boca da grande cabeça de leão, “não a posso perder de vista”, pensou e não hesitou em entrar na grande cabeça de leão quando chegou.

Caminhou uns segundo por um corredor cujo piso tinha placas quadradas de dois tipos diferentes de verde, um mais claro que o outro, e se encontrou na entrada do que parecia ser um apartamento estilo loft. A entrada do apartamento tinha cortinas douradas muito peculiares, de longe pareciam o cabelo de uma loira. Por dentro, o apartamento tinha pisos de madeira clara e um sofá com a forma dos lábios de uma mulher com batom vermelho no centro. Desde antes de entrar no apartamento era notória a distância da imponente parede vermelha no outro extremo da entrada. Na parede vermelha havia dois quadros pendurados um ao lado do outro, em um quadro a pintura que de longe parecia ser o olho esquerdo de uma mulher e no outro o olho direito. No piso, entre os quadros, havia um móvel com a forma de nariz que sustinha um relógio. “Que louco viveria neste lugar?”, pensou Augusto em voz alta.

Depois de procurar a mulher da cabeça de flores pelo apartamento e falhar na tentativa, Augusto voltou por onde havia entrado, a única opção que tinha na verdade pois o lugar não tinha mais saídas. “Perdi minha oportunidade”, pensava. Quando saiu da grande cabeça de leão, Augusto seguia em um deserto. A predominância cromática do verde ao redor havia desaparecido. Caminhou uns quantos minutos à deriva quando começou a escutar o eco intermitente de um forte som que vinha de longe, como os passos de um gigante que corria até onde ele estava.

Foi então que Augusto viu em fila no horizonte uma manada de quadrúpedes que não reconheceu no instante, mas que se moviam a uma grande velocidade em sua direção. Uma vez os animais estiveram mais próximos e ele pode reconhecer sua figura, era um cavalo voluptuoso que liderava, seguido por vários elefantes, um atrás do outro. O estranho era que estes animais tinham patas muito mais largas que o comum, patas com quase o dobro do tamanho que a de uma girafa e com uma figura e andar aracnídeo. Os elefantes carregavam em seus lombos diferentes obras, um levava uma copa na qual se encontra uma mulher nua extasiada de desejo, outro levava um obelisco, outro uma edificação com arquitetura palladiana e o último, mais aleijado que os demais, uma torre fálica.

Apenas o cavalo estava a uma distância relativamente perto de Augusto, se encabritou e relinchou causando um forte eco. Quando pôs suas duas patas dianteira sobre o solo, fez um som ensurdecedor e um curto tremor. Augusto aproveitou o momento para saltar e abraçar uma das patas do cavalo, que em seguida começou de novo a mover-se. Pretendeu com toda a sua força segurar-se na pata do cavalo, não obstante, depois de vários minutos o cavalo se encabritou de novo e não pode segurar-se mais, saiu expulso com uma força tremenda que fazia seu corpo girar sem que pudera controlar e sem que pudera ver onde cairia.

Passaram uns minutos e Augusto sentiu que havia caído, mas sem nenhum impacto nem explosão. Abriu os olhos e havia a seu redor todo tipo de objetos e figuras surreais. Havia um piano com sua pequena abertura que continha uma “fuga de água”. Quando Augusto seguiu olhando o trajeto do jorro de água percebeu que o chão estava a vários metros de distância, levitava junto com todas essas figuras. Havia ao seu redor muitas coisas, um grande gafanhoto, um minotauro com uma gaveta no lugar de seu peito, uma mão com formigas que saem de um orifício em seu centro, um cristo, um relógio que se derrete, uma girafa em chamas, figuras eróticas de torsos de mulheres desnudas, seios ou genitais e toda tipo de rochas com perfurações ou formas estranhas. Estava entretido com a peculiaridade de cada forma quando viu a uns quantos metros acima dele, era a mulher com a cabeça cheia de flores.

Ambos estenderam seus braços e se agarraram as mãos graças a uma estranha força que os atraiu. Augusto teve um furor imediato, sentiu um alívio instantâneo do imenso fardo de suas dores, um sentimento de confiança do que ele sabia, seria sempre escravo.  Todos os objetos se afastavam cada vez mais do chão e estavam sendo sugados ao fim pelo que parecia ser o rosto de uma mulher que ria. Era uma espécie de objeto surreal canibal, pois se alimentava dos demais objetos, mas Augusto, em seu transe, não havia se apercebido e a verdade não lhe importava. Quando chegou o momento de serem sugados ambos, o sorriso do rosto de Augusto ainda não havia se apagado.

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Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

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