Conto: Póstumo Epitáfio de Wally Alligator

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Wally_Alligator
Ilustração de Felipe Menegheti

Implicava até com minha sombra desobediente, mas convivia bem com a Tuca, quando ela ia limpar a casa. Eu respeitava a Tuca. Ela me respeitava. Um dia nos olhamos prolongadamente. Ela  interpretou como um pedido para dar um passeio e resolveu atender. Ambos estávamos no 11º andar para descer. A porta do elevador era automática e a família do poodle estava com tudo aberto na casa deles. Até que o elevador parou e o poodle surgiu de algum lugar invadindo o elevador. A Tuca, diante do instinto de preservação do medo que nos protege, me levantou para o alto com força. Ah! Que posição desconfortável! Rapidamente me espremi pela guia peitoral e escapuli por baixo ao encontro do poodle cacheado. Lati para começar, mas logo o poodle correu pra casinha junto de mamãe fanha. Não pude perder a oportunidade de entrar no apê deles. A dona Mara e seu cão gemeram sem frescura. Ela vestia uma saia de seda estampada que rapidinho fiz uma colcha de retalhos e dei um safanão amigo nos cachos hidratados do poodle atrevido e melindroso. Saí de peito erguido ao encontro da Tuca, que estava desesperada sabe-se lá o motivo. Posteriormente, a vizinha nos acusou de invasão de domicílio e ficou um ano sem dirigir sua voz fanha para todos os meus. Passei por isso indo me isolar num canto, rosnando e impondo distância, assim, muito democraticamente, resguardei meus atos questionáveis.

Os mamíferos de duas patas possuem hábitos estranhos e minha família não era exceção: nesse mesmo dia, após me defender bravamente diante dos prantos da vizinha, indignada, minha mãe me levou ao Pet Shop para trocar a guia, mas dessa vez, por aquela que se o cão puxa muito, aperta o pescoço. Enquanto ela escolhia, eu olhava a imensa gaiola de pássaros cantantes e multicoloridos. Um deles me chamou a atenção. Me aproximei com reciprocidade. Porém, a gaiola caiu no chão e abriu. Os pássaros voaram para todos os lados, sendo que nem pude conversar com esse novo amigo. Fiquei frustrado. O dono do tal Pet Shop espumava de raiva e minha mãe dizia: “o senhor nos desculpe, quero pagar pela despesa causada”. Ouvimos dele um apenas: “por favor, senhora, se retire”. Obedecemos ao estranho que aprisionava pássaros e voltamos para o nosso habitat. Após me chamar de “seu puto” com ímpeto na voz, notei minha dona com um sorriso Mona Lisa nos lábios observar o lado austero do meu bigode molhado na brisa da janela do carro. Estava realmente cansado desse dia longo.

Com a chegada da maturidade, foquei mais para a família, mesmo que o TOC tenha dado o semitom acima. Recusava Havaianas e não tolerava quem arrastasse os pés com elas. Sabia ser carinhoso em outros momentos, era elegante para comer e adorava um pãozinho. Tive duas namoradas, sendo que apenas uma levei para casa, infelizmente, no dia errado do cio: a Areta. Era apaixonado por ela, que descaradamente me abaixou o rabo. Sofri. Restou-me o consolo dos trapos velhos que dava para montar a galope.

Havia o Tom, o fox terrier vizinho que morava bem embaixo de mim. Tínhamos uma linguagem única: nos amávamos e odiávamos ao mesmo tempo, da mesma forma, ou sem forma alguma! Porém, houve apenas um encontro fatal no elevador: eu saindo para a garagem, ele entrando para subir. O olfato nos disse que estávamos mais perto do que de costume. A porta abriu e nossas bocas pareciam garras inseparáveis. Havia força, rancor, dor e vigor em nosso silêncio arenoso. Foi o que no mundo de duas pernas chama-se beijo. Esse foi o beijo mais fatal da minha vida. Com as guias que asfixiam o pescoço, nossas donas foram impiedosas, mas em vão para nos separar. Foi um encontro muito especial, com o mesmo grau de respeito. O funcionário do prédio veio com um balde de água para nos descolar. Levamos pelos um do outro em nossas salivas e só voltamos a estar algumas vezes pelo terraço, no precioso momento em que tínhamos para nos afrontar. Até que um dia, a dona do Tom mudou de casinha.

A catarata tornou meu temperamento mais intransigente na velhice, que, obviamente, chegou para mim. Meu último gesto senil foi abocanhar quem resolvesse assistir Big Brother Brasil no habitat de casa. Em meus últimos dias, comecei a ser dominado por uma letargia. Perambulava lentamente pela casa e aguardei fielmente minha dona chegar do trabalho, depois, voltei a dormir para sempre em sono REM, já sem as regalias do líquido aminiótico. A passagem foi serena. Estava rodeado por quem mais me amava e produzi um capital abstrato chamado emoção.

Enquanto levavam meu corpo embrulhado num cobertor para o veterinário que atendeu, minha alma subia lentamente como uma bexiga que se perde no tempo e no cosmos. Me senti um astronauta no espaço e pude observar como a Terra é de longe. Ao esbarrar nas nuvens, começou um túnel meio violeta… achei que fosse o céu, mas era o purgatório, e seu ar mais puro que o antigo lugar de meu habitat. Segui na direção de uma árvore nesse novo espaço que me pariu ou engoliu. Foi assim que conheci Machado e seu potinho “emplasto Brás-Cubas”. Voltei anestesiado de cão para onde quer que fosse.

É costume incomum se levar cães para enterrar em cemitérios (claro, desconhecemos dinheiro), por isso a Prefeitura recolhe o cadáver do nosso ego como resíduo descartável de Centros Veterinários e nos destina para cremação coletiva. (Preferi não me informar sobre a sanitária disso). Apenas gostaria de dizer algo dessa busca original mamífera: não tive filhotes com a cadela da minha vida. Recebi o único beijo fatal na mordida de um semelhante igual. “Não transmiti a nenhuma criatura o legado de minha miséria”, mas pude me rever. Deixei saudades eternas. Recebi mordidas de paz em minha cova.

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