Conto: Prazer em ler e ser

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Sigo a rotina. Após um longo banho retorno minha leitura habitual. Deslizo as páginas rapidamente em meu tablet. Tudo é muito mecânico. Página 87, 88, 89… Percebo que não estou mais lendo, mas sim vagando. Que belo! A Literatura cumpriu seu papel de agente dos sonhos! Antes fosse… O silêncio esplendoroso que deveria tomar minhas ondas cerebrais é abruptamente interrompido pela barulheira da rotina. O prazer em ler, para onde foi? Preocupo-me apenas em detonar a lista que me foi imposta pelo mundo. Clarices, Machados e Drummonds encaram-me da estante. Decepcionados, suponho. Tornei suas obras cotidianas como o ordinário ato de escovar os dentes ou pegar o ônibus das 6:15.

Paro por um instante. Coloco o tablet em minha escrivaninha o mais distante possível. Quero me afastar daquela nebulosidade que o obrigatório me trouxe e lembrar do porquê me apaixonei por Literatura em primeiro lugar. Fecho os olhos e lentamente sinto a cadeira abaixo de meu corpo dar espaço à suavidade de viajar no tempo. Primeira parada: infância. Lá está a pequena de trancinhas escutando ansiosamente cada palavra dramatizada pelo pai. Fascinou-se pelo lobo, o bolo, a chapeuzinho amarelo e sentiu seus medos irem embora junto com o da menina. Anda mais um pouco e se vê crescendo. Os 11 anos trouxeram o asteroide B612 e o pequeno príncipe de cabelos loiros e selvagens dando lição de que o essencial é invisível aos olhos. Ah, a adolescência… Clarice foi descoberta e a novidade de GH com a barata surpreendeu. Poemas de Vinícius embalam os amores e Drummond estendeu as mãos para juntos tornarem-se gauches na vida.

Abro novamente os olhos. Encaro as redações a serem corrigidas, as páginas em branco que urgem por continuações e para o tablet que chama para finalizar a leitura. A rotina bem que tentou, mas não conseguiu anular a pequena leitora que virou a mulher escritora e professora. Seu coração pode esfriar diante de tantas obrigações, mas a certeza de que se está no caminho que sempre sonhou traz chamas capazes de derreter a melancolia da vida adulta.

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Ilustração exclusiva para o conto por Giovana Christ.

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