De quantas referências se faz uma fantasia urbana, Eric Novello?

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 “Me lembro de ver na televisão um filme live action ou uma minissérie baseada em Alice e isso ter ficado na minha cabeça por alguns anos antes de ir atrás dos livros de fato. Exércitos que são cartas, um personagem que é um ovo em cima do muro. Gatos diabólicos que são guias num mundo estranho. Já reparou no quanto a ilustração original do Cheshire é assustadora?”

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Exorcismos, amores e uma dose de blues grafado sobre uma capa negra, com a tipografia entre a fumaça e o neon de um pub noturno. No topo, prédios em frente à lua, assistindo a pássaros e a alguém que parece um lobisomen. Esta é a capa do novo livro de Eric Novello, impossível não ficar olhando, revirando etc. Mas falemos do livro.

Talvez você deva, antes, colocar para tocar It Hurts Me Too, de Elmore James, afinal a obra tem essa pegada de jam session – não porque possa se sugerir que o livro seja apenas improviso, muito pelo contrário, cada coisa ocupa um lugar tão definido num mundo tão difuso, mas ainda assim, e por isso chamo de jam session, há uma vivacidade ali contida.

Libertá é a cidade de boa parte do cenário. E comecemos falando sobre ela porque a cidade é um elemento essencial em Exorcismos, amores e uma dose de blues. Estamos totalmente no campo da fantasia urbana. Libertá fica próxima ao Rio de Janeiro, e também de Minas Gerais, em nosso mundo, que na linguagem do livro é chamado de “reflexo”. Aliás, cada realidade é um reflexo diferente. Para irmos de uma realidade à outra, temos de passar pelo “entre-mundos” – uma espécie de hall que te oferece acesso a todos os cômodos da casa –, tendo que se utilizar de um portal, que deve ser um “espelho”.

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Vale um brake para conferir este próprio aspecto urbano na linguagem do livro:

“São centenas de mundos, ilusões, metrópoles, confluindo para uma só cidade, uma região amórfica de ligação que se estende por quilômetros e quilômetros, indo e vindo de lugar algum. Cada um desses mundos é um reflexo dos demais, versões de outras realidades que se influenciam de modo constante em busca de equilíbrio. O único jeito de chegar até eles é passar por aqui, por essa estrada velha, à mercê de distorções de tempo e espaço.” (pg. 60)

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Ilustrações do livro por Carolina Vigna

A cosmopolita Libertá também abriga o Conselho de Hórus, uma organização que lida com a invasão de seres mágicos no plano da realidade. Estes seres podem ser feéricos ou oníricos. Então conhecemos nosso protagonista, um exorcista: Tiago Boanerges.

(Estes parênteses é necessário. Bastante. Apenas para deixar claro que apesar de todos os elementos fantásticos, no que se refere à obra, um personagem pode ser profundo sim, com conflitos, desafios e emoções que nos remetem à possibilidade real deste personagem existir (pode ser meio bobo, e é, na verdade, dizer isso aqui, mas conheço muita gente que desiste de um livro apenas por ver algum toque de fantasia. Calma aí, ô bam-bam-bam)).

Tiago foi expulso do conselho de Hórus dois anos antes. Era um exorcista muito bem sucedido, mas errou em uma das missões mais importantes: exorcizar da jovem Elisa Goldin uma musa – um ser que, como todos os oníricos, consome energia vital de seu hospedeiro, ainda que lhe dê em troca a inspiração artística, ou para qualquer outro sonho/desejo que esta pessoa tenha.

(Aqui entra uma metáfora bacana. Por exemplo, quando vemos um desses famosos estourarem, fazendo sucesso, porém com o passar dos anos, parece que vão definhando. Olha só, será que não tem umas musas soltas em nosso mundo? Cuidado aí, gente).

Quando o livro se inicia, Tiago é este mago afastado do conselho, mas que vive de pequenos trabalhos do submundo, visto que apesar do fracasso, seu talento excepcional continua ali. Também é instrutor de uma jovem necromante, Julia Yagami, e vive com seu gato Ori, gato que na verdade é um onírico que aparece e desaparece, esfumaçando-se.

Contudo, a vida de Tiago é abalada por uma ligação de Marcos Sardenha, seu ex-superior. O encontro na Drinqueria Blues o lançará em uma nova missão, extraoficial, para resolver algumas ocorrências mágicas, além de alguns crimes, digamos, no mínimo, macabros.

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Eric, qual a trilha que você sugere para esta conversa? Alguma coisa de Nina Simone, Elmore James, ou Fleetwood Mac? (vai ter um player da música aqui, hombre, então, tipo, não sugere uma da Elisa Goldin, ok? (Elisa é personagem do Exorcismos… que tem uma banda)).

E.N.: Coloquei no meu Spotify uma lista de 12 músicas que são citadas no livro ou que serviram de inspiração para alguma cena ou personagem.

Ela não é 100% blues, mas funciona bem tanto para quem já conhece quanto para quem ficou curioso de conhecer por conta do livro.

Quem se interessar pela próxima fase do joguinho, é só procurar a minha playlist “Blue, Jazz and The Devil Trip”, também no Spotify.

Da lista, destaco quatro delas, que estavam na minha cabeça desde as primeiras ideias do EADB e que devo ter escutado uma centena de vezes:

Fleetwood Mac e sua Black Magic Woman, Freddie King com a interpretação de Have you ever loved a woman?, Lutther Allison com Playin’ a Losing Game, que abre e encerra nossa história, e, claro, Feelin’ Good, da Nina Simone, a música que mora na cena que é o coração do livro.

E, fique o senhorito sabendo, em breve também teremos a música da Elisa Goldin disponível no Spotify!

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Eric Novello

E por falar nisso, como é que funciona esse mix de referências música-cinema-literatura quando você tá criando a obra? Falo de cinema também pois em alguns momentos, enquanto lia o livro, tive a impressão mais ou menos do que seria um filme feito pelo David Lynch e o Guillermo Del Toro, com direção de fotografia e projeção de cenários do Dave McKean. Embora tudo com um toque seu, evidentemente.

E.N.: Cara, gosto bastante do David Lynch. Ele mora no mesmo quartinho do Bertolucci no meu coração. Mas sou uma criança no parquinho perto do que esses dois conseguem fazer. Também curto bastante a dedicação do Del Toro por seus monstrinhos (ele gosta mais dos monstros do que das histórias, pode reparar) e o visual do Dave McKean é embasbacador. Minha leitura de Arkham Asylum ainda está gravada na minha retina. Então acho que sou quadruplamente culpado nesse crime. E provavelmente culpado quando falam de Tim Burton, de Hellblazer, do Sandman do Neil Gaiman e de outros crimes mais.
Eu abraço com gosto minhas referências, sem nenhum pudor, mas como racionalizar sobre o assunto é difícil pra caramba, vou sair pela tangente.
Sou fruto de sincretismo cultural. Meu panteão reúne pessoas vindas da literatura, do cinema, das HQs, da pintura, dos jogos. Por ter 35 anos, peguei toda uma evolução de mídias narrativas que é invisível a boa parte da geração “mais nova”, e essa geração mais nova falará algo parecido daqui a 35 anos, seja lá onde estivermos.

O engraçado é que não é incomum ouvir que os meus textos são muito visuais. Às vezes ouço isso como um elogio, às vezes como demérito. “Shame on you, mister writer, seu livro parece um filme.” Só que não podemos nos esquecer de que os signos não são exclusivamente linguísticos. A morte existiu antes da palavra morte, escrita e falada. A morte existiu em si mesma, nos desenhos nas pedras, no teatro de sombras nas paredes das cavernas. Existiu na figura do homem erguendo o osso na frente de seu inimigo, na ameaça da morte. Essa riqueza semiótica vem então desde a origem do homem, vem daquele passarinho que entendeu que nem todo vermelho significa comida. E foi se transformando, encontrando seus caminhos dentro de uma diversidade de mídias e expressões artísticas, em diferentes formas de diálogo, que talvez seja o que nos importa aqui. Se nós pensarmos em joguinhos de plataforma, como Super Mario, a morte também está lá, com o bonequinho caindo 2D pela tela.

A cola que une tudo isso, o critério inconsciente de escolha, eu não sei, embora tenha meus palpites. Mas acho legal pensar que um personagem de Mortal Kombat possa encontrar uma textura de Dave McKean, uma história do Neil Gaiman, um texto do Philip K. Dick e se transformar numa coisa completamente diferente depois do liquidificador criativo. Após o liquidificador, há o produto inconsciente, fruto desse duo autor-consumidor indissociável. E há as escolhas conscientes, com a interferência da técnica.

Se estou escrevendo uma cena com um boneco de pano saindo de uma garrafa pra encher a cara e dançar blues, é claro que eu quero que ela seja visual. Vamos curtir a brincadeira. O que não significa que eu não me permita explorar formas mais literárias de transmitir uma “mensagem”, deixando o trabalho visual em maior parcela para o leitor. Um exemplo é a cena em que determinado personagem é torturado e começa a delirar (ou não). Existe ali uma quebra de lógica, uma aproximação do nonsense, que só seria permitida pela literatura da forma que foi representada.

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Ilustrações do livro por Carolina Vigna

Uma das referências claras do livro é Alice no País das Maravilhas. Não vou discorrer muito na pergunta para não dar spoilers, mas queria que você contasse um pouso sobre essa sua relação com a obra de Lewis Carrol.

E.N.: Eu queria ter uma resposta mais profissional ou misteriosa para isso, mas a verdade é que eu também não sei quando isso começou. Me lembro de ver na televisão um filme live action ou uma minissérie baseada em Alice e isso ter ficado na minha cabeça por alguns anos antes de ir atrás dos livros de fato. Exércitos que são cartas, um personagem que é um ovo em cima do muro. Gatos diabólicos que são guias num mundo estranho. Já reparou no quanto a ilustração original do Cheshire é assustadora? Os personagens de Alice podem ser tudo. Eles podem ser personagens infantis e inofensivos ou extremamente adultos e sombrios. Isso é fascinante. É como se pedissem para ser ressignificados o tempo inteiro. Da mesma forma que o frasco escrito “beba-me”, eles estão sempre nos tentando.

Para não me estender demais num discurso sem sentido (nonsense?), vou me ater a dois detalhes. O primeiro, mais simples, é o fato de Alice no País das Maravilhas existir por um único motivo: a curiosidade de Alice. Ela vê um coelho, fica curiosa, e vai atrás dele. Isso está no meu livro. É a motivação dos magos: a curiosidade. O outro é a questão da identidade, trabalhada em cada encontro de Alice com os demais personagens. Alice duvida que seja Alice, Alice é confundida com outra personagem, Alice muda inclusive fisicamente, aumentando e diminuindo de tamanho. Quando conversa com a lagarta, se não me engano, ela não consegue mais dizer quem é. Já mudou tantas vezes desde que chegou ao País das Maravilhas que não sabe se é a mesma Alice que acordou de manhã. Por fim, temos o encontro com o gato, talvez o ápice dessa história, quando ele associa a sanidade à questão do autoconhecimento.

“How do you know I’m mad?” said Alice.
“You must be,” said the Cat, “otherwise you wouldn’t have come here.”

E o mundo é meio isso, não? Um monte de gente tentando desconstruir o que pensamos de nós mesmos, tentando nos convencer de que nós é que somos os loucos.

Agora vamos para Libertá. Exorcismos tem uma pegada meio roadcity. Temos a sensação de que você nos toma pela mão e orienta para olharmos os lados – com cuidado, sempre. Me divido quando penso se gosto mais da trama e de seus personagens ou do universo do livro. No entanto, fiquei com a sensação de que este mundo há muito mais para ser explorado, não? Ele serviu na medida à esta história, mas parece caberem outras, certo?

E.N.: Exorcismos é um tutorial. Sabe aquela parte do jogo que nos explica as regras sem precisar do manual e que antigamente era chata e a gente pulava, mas que depois foi ficando cada vez mais legal a ponto de se parecer com uma fase inicial, simplesmente? Se não, jogue o X-Com mais recente. Exorcismos é a porta para um novo mundo. Ele foi pensado para ser uma historia fechada, com início, meio e fim, mas também para ser essa apresentação de um mundo que pode continuar a se expandir, sempre levando o leitor a novas situações. Ele foi o tutorial, por assim dizer, desse mundo orgânico em que as tramas dos personagens que cruzam o caminho do protagonista não dependem necessariamente da história principal.

Algo que tinha em mente desde o início é que Exorcismos seria centrado em um homem, o Tiago Boanerges, nosso exorcista. No livro, aprendemos que o Tiago cometeu um erro, que ele tentará consertá-lo e terá de lidar com as consequências disso. Não importa a purpurina, os efeitos especiais, é o coração de fumaça do Tiago que está em jogo. É uma história de tom mais pessoal. Mas essa saga de redenção do exorcista gera uma consequência.

Então, no livro seguinte, veremos como essa consequência afetará não a vida de um homem, mas de toda Libertà, a cidade onde se passa a história.

No dia em que essa trama mais longa for concluída, o que teremos em mãos será uma versão ampliada e mais ambiciosa da estrutura do Neon Azul. Diversas histórias pessoais interconectadas, gerando a história de um todo que é maior que suas partes individuais.

Nós vivemos em um mundo pós Game of Thrones, pós Marvelverse nos cinemas. Como autor de fantasia, é esse meu benchmark, meu referencial de desafio. Aconteça o que acontecer.

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Exorcismos, amores e uma dose de blues
Eric Novello
Editora Gutenberg
2014
336 páginas

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