Dez centímetros acima (e muito mais adentro) da realidade

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Em Dez centímetros acima do chão, obra de  Flavio Cafiero, experimentalismo elegante, ironia rascante, inventividade surpreendente e lirismo obscuro se integram de modo inusitado e instigante

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Flavio Cafiero, autor dos livros O frio aqui fora, Dez centímetros acima do chão e O capricórnio se aproxima

Um mundo repleto de seres superficiais como “turistas ávidos por memórias afetivas de bolso”, visto por um sujeito de olhar penetrante e sarcástico, mais interessado em seu desdém pela realidade do que nela própria. Isso embora o mundo seja “mais [dele] do que de qualquer outro, pois foi a [ele] que o lugar revelou sua essência persistente”.

Assim se poderia definir, em linhas gerais e utilizando-se do discurso do próprio livro, a coletânea de contos de Flavio Cafiero, Dez centímetros acima do chão, obra vencedora do prêmio Cidade de Belo Horizonte (2013). Quase todas as quatorze narrativas que a compõem apresentam um narrador que parece sempre um mesmo, uma personalidade una e bem definida, constituindo um padrão no estilo ficcional do autor – com algumas variações: a perspectiva de um personagem solitário, um tanto prepotente e desdenhoso, que parece desprezar a humanidade em suas atitudes mais comezinhas e clichês.

Para representar essa quase entidade que vive entre os homens comuns, mas que enxerga muito além da maioria deles, Cafiero às vezes elege narradores-personagens extraídos dos contextos mais marginais desse mundo – ou do outro: os mendigos, os desamados, os abandonados, os discriminados, os execrados. Em algumas ocasiões, escolhe justo os representantes da mais confortável burguesia, que revelam suas próprias deformidades morais – com as quais, eventualmente, o próprio leitor é obrigado a se identificar –, como se percebe em “Arabescos” ou “Orcas”. Em alguns textos, essa personalidade peculiar manifesta sinistras tendências sociopatas, e de modo inusitado, surpreendente.

Esta persona ficcional, de perfil psicológico uno, mas representações materiais várias, está sempre um pouco acima do real, como se o visse de fora. É esse seu distanciamento que lhe permite absorver e digerir melhor o que acontece à sua volta, mergulhando mais profundamente mundo adentro. Para este insólito narrador de Cafiero, por exemplo, “a praia é a casa temporária de funcionários públicos em férias com a esposa, ou de dentistas que juntaram um dinheiro suado pra viajar, ou de grupos de invertidos que se congraçam na faixa de areia próxima ao emissário submarino, ou de grupos de mulheres solteiras sonhando com amores clichês, é uma fauna de aves migratórias em busca de tudo o que faltou durante o ano, todos sonhando com um corpo magro nas próximas férias, é já na baixa temporada, bem, fora da época dos turistas essa praia é o cemitério de escritores que não escrevem […].”, como consta no conto “Visitante”.

Não é por acaso a recorrência, na obra de Cafiero, da figura dos visitantes, dos turistas, dos mochileiros, dos clientes; dos que passam, enfim, por lugares – e pela vida? – brevemente, com olhar admirado e superficial munido das lentes do exótico, sempre sedentos por um suvenir qualquer – seja um pequeno objeto de decoração ou uma memória afetiva que os faça sentir-se conectados a um determinado lugar, e que provavelmente é a mesma de inúmeros outros passantes. Algo semelhante se apresenta logo de início no conto “Cão”, que se passa em uma cidade turística indeterminada cujos cães de rua, que são muitos, frequentemente se apegam a um ou outro viajante.

De todos esses episódios cotidianos – e daqueles que os protagonizam, normalmente gente infeliz –, o narrador de Cafiero faz uma troça sutil e elegante, na medida em que os relata de modo quase enciclopédico – e um tanto cômico por isso mesmo –, insinuando aqui e ali uma opinião particular nunca muito positiva, tendendo sempre ao trágico. O leitor que abre este livro talvez não sinta isso explicitamente, mas se terá grudado ao seu inconsciente uma sensação de decadência humana ao longo de toda a leitura.

Essa impressão estará claramente expressa em “Não fale com o fantasma”, que se passa num bar fictício chamado Tulipa Dourada. Nesse lugar, “birosca mais antiga da região, ponto reverenciado por artistas sem palco e sem banda, […] refúgio cultuado por velhotes sem ocupação e por turistas bem informados, que ficam extasiados com a atmosfera despencada do estabelecimento”, apesar do nome sugestivo, não se vende cerveja. O narrador, um frequentador antigo e assíduo, sabe disso e, com a soberba de um grande conhecedor de alguma coisa, ri alto dos desavisados que se encostam ao balcão e pedem um chopp gelado, enquanto os avalia muito criticamente. Foi somente a ele que “que o lugar revelou sua essência persistente”.

A situação em que vive cada um desses narradores, porém, é sempre tão trágica e deprimente quanto o vazio daqueles que vivem “em busca de disneylândias genuínas”; são todos igualmente miseráveis, todos perderam alguma coisa – ou mesmo tudo. Basta ler “Jesus e os terríveis”, “Os pulgões” ou “Manual do homem do tempo” e verificá-lo.

Além dessas questões muito consistentes na obra de Cafiero que se referem ao conteúdo, o livro impressiona em termos de experimentação formal. Seu grande trunfo nesse sentido é a utilização criativa das burocráticas notas de rodapé. Aqui, elas participam dos textos, e de modo inovador em cada um: apresentam flashbacks em paralelo à narrativa do presente, como em “O atirador de facas”; dão voz a uma provável personalidade outra do narrador de “Cavo varo”, que entra em diálogo com ele; traduzem em falas, em pensamentos, o significado da conversa de olhares do protagonista com sua esposa em um restaurante no conto “Arabescos”; simulam notas de rodapé em uso tradicional no estranhíssimo “A uhtima aventura do erohi – epizohdio 13”.

Este último, que emprestava seu título à versão original da coletânea, é um caso à parte. É peça de extrema inventividade, exceto naquilo que os escritores comumente inovam: o enredo. Trata-se realmente do capítulo final da história de um herói padrão Hollywood. Para reforçar o clichê das ações, faz-se referência direta à obra O herói de mil faces, do mitólogo norte-americano Joseph Campbell, que elaborou o arquétipo narrativo da “Jornada do herói”, uma estrutura que aponta as várias etapas de uma aventura heroica tradicional desde os mitos da antiguidade clássica e em que se baseia a quase totalidade dos roteiros cinematográficos.

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Dez centímetros acima do chão (Cosac Naify, 2014)

Em compensação, Cafiero inova na forma – e até esnoba o conteúdo; enquanto pouco se sabe sobre o herói em questão, pois tudo é descrito nebulosamente e nada é explicado, já que este seria o capítulo final de uma história, o texto se estrutura numa espécie de roteiro de programa televisivo. As notas de rodapé se constituem de comentários de um suposto autor do roteiro, de um editor e de um organizador. Esses últimos tratam a obra quase como um artefato arqueológico, e suas notam se tornam mais interessantes do que o próprio roteiro, pois parece que o importante neste texto é não a aventura do herói, e sim a saga do texto em que ele vive.

Mesmo os aparentes erros de grafia do título do conto, que comparecem também nas notas, colaboram para a narrativa, pois resguardam um mistério que certamente deixará um leitor atento interessado e intrigado. É esse um dos fatores que faz de “A uhtima aventura do erohi – epizohdio 13” o texto mais interessante da coletânea, em termos de invenção e criatividade – muito embora os outros treze contos não fiquem atrás em diversos sentidos, especialmente no sucesso que alcançam em despertar no seu leitor a expectativa, o interesse, a emoção e a reflexão. Isso apesar da (ou devido à) atmosfera insólita que paira sobre o estranho mundo ficcional de Flavio Cafiero.

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