Diante da nossa dor – Vídeoperformance de Márcio-André contesta o asselvajamento dos homens

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Roteiro é baseado num fragmento do livro Poemas apócrifos de Paul Valery, a ser lançado em julho pela Confraria do Vento, e exibido com exclusividade pelo Homo Literatus.

Diante da dor dos outros (Companhia das Letras, 2003), uma das obras mais célebres de Susan Sontag, é um poço fundo com água rasa. Nela, a premiada escritora estadunidense analisa o impacto do horror contido em registros visuais no mundo contemporâneo.

Partindo de uma reflexão sobre mídia de massa e entendimento da guerra e da desgraça, Sontag questiona o real efeito das imagens de filas de cadáveres, de crianças deformadas por mutilações, no nosso dia-a-dia congestionado por preocupações particulares.

A morte de desconhecidos em território estrangeiro, acessada pelos filtros dos meios de comunicação, estaria nos tornando insensíveis ao sofrimento? Os bombardeios de notícias estariam enfraquecendo a relevância da tragédia dos bombardeios bélicos?

Encarar a dor dos outros seria olhar dentro desse poço fundo, onde a visão precisaria atravessar camadas de escuridão até alcançar o próprio pequeno reflexo na água rasa.

O choque pode tornar-se familiar. O choque pode enfraquecer. Mesmo que isso não aconteça, a pessoa pode não olhar. As pessoas têm meios de se defender do que é perturbador (…) Isso parece normal, ou seja, adaptativo. Assim como a pessoa pode habituar-se ao horror na vida real, pode adaptar-se ao horror de certas imagens. (pág. 70)

Em maio deste ano, uma série de imagens horrendas foi bombardeada pelos noticiários brasileiros. Vídeos e fotos registravam uma mulher sendo carregada e espancada por um grupo de pessoas à insanidade de um justiçamento. A vítima chamava-se Fabiane Maria de Jesus, dona de casa, esposa e mãe, morta em decorrência de uma execução popular provocada por um boato, no qual seria uma raptora de crianças sacrificadas em rituais de magia negra, na cidade de Guarujá, balneário paulista.

Os registros da crueldade atravessaram continentes e, cotejando a questão levantada por Sontag, impeliu o escritor e cineasta brasileiro Márcio-André, radicado há três na Espanha, a transformar o choque em arte. A primeira manifestação ocorreu no Dia da Língua Portuguesa, realizada na Universidade de Budapeste poucos dias depois do acontecimento. A barbárie gerou na conferência do autor um discurso de contestação, cujo trecho segue abaixo:

Não foi a polícia arrastando favelados, não foram bandidos arrastando filhos da classe média, não foi a classe média financiando o extermínio. É no linchamento que vemos, reunidos em um mesmo espetáculo, sem qualquer hierarquia ou distinção, homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos, favelados e classe média, polícia e bandido, culpados e inocentes, exploradores e explorados, ‘trabalhadores’ e ‘vagabundos’, militares e civis, ignorantes e cultos, reacionários e libertários, conservadores e liberais, mídia e espectadores, religiosos e ateus, crentes e “do mundo”, cidadãos do bem e cidadãos do mal etc. Todos em comunhão, vibração e dança. Como em toda dança, não há heróis ou vilões, apenas a anulação das dicotomias para que a festa se dê no tempo e no espaço. O linchamento é o maior legado que nossa geração deixará às vindouras.

Capa do livro

Agora, em parceria com o artista francês Laurent Winkler, Márcio-André acaba de lançar a vídeoperfomance Obrigado, Senhor! (acima), em que protesta contra o asselvajamento dos homens, dedicada à memória de Fabiane Maria de Jesus.

Com roteiro tecido sobre um fragmento de Poemas apócrifos de Paul Valery, coletânea inédita que sairá no próximo mês pela editora Confraria do Vento, exibido em primeira mão pelo Homo Literatus. A tradução do francês é do próprio Márcio-André, um dos editores do selo, e traz versos transgressores e pungentes de um dos grandes filósofos e escritores do século XX.

Em dado momento do vídeo, o texto diz “Obrigado, senhor, por assar com gilete o pão de quem nos rouba comida, por nos ofertar a brutalidade como entretenimento, por não matar tão rapidamente”. Ao fim do ensaio, Sontag chega à conclusão de que, a despeito de tamanha agressividade visual, nós, os espectadores, nunca teremos a dimensão verdadeira do horror, pois não estamos em risco físico, sem o qual “não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal”.

Talvez só a arte consiga. Talvez só a ela caiba compartilhar a verdade da dor.

 

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