A dissimulação em Missa do Galo, de Machado de Assis

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Publicado no livro Páginas Recolhidas, em 1899, o conto Missa do Galo tornou-se um dos mais celebres textos do mestre Machado de Assis. Muitos de vocês, leitores, já devem conhecer o conto, mas já notaram a tamanha dissimulação das personagens?

Machado, mestre da dissimulação
Machado de Assis

Trata-se de uma narrativa em 1ª pessoa, feita por Nogueira. Aos dezessete anos, o jovem vai ao Rio de Janeiro para estudar e se hospeda na casa de Nogueira, viúvo de uma prima sua, que agora é casado com Conceição (considerada uma santa!), e possui um relacionamento extraconjugal. O conto se passa na véspera do Natal, dia em que Nogueira prefere não dormir e ficar na sala aguardando a hora de ir à Missa do Galo com o vizinho. Enquanto espera, os outros dormem – ou melhor, era o que achava. No entanto, surge Conceição, que vai até a sala da casa, onde conversam sobre diversos assuntos.

Baseando-se pela pequena apresentação, parece que o conto é extremamente simples – ledo engano. Afinal, estamos falando de um conto de Machado, conhecidíssimo por suas análises psicológicas e pela ambiguidade comportamental. O que não é diferente no conto em questão.

Mas e a dissimulação?

Para um leitor atento,  a dissimulação é perceptível logo no início do conto quando Nogueira diz que “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos atrás” (p.83). Ora, se ele nunca pode entender a situação como é que pode narrar o acontecido (e tão detalhadamente)?  No momento da narrativa, passaram-se anos da conversa e ele ainda diz não entendê-la, mas tem em mente cada detalhe da conversa. Conta, minunciosamente, aquela noite em que tanto conversara com Conceição.

Primeiramente, devemos traçar o perfil de Conceição, que, ao contrário do que muitos leitores pensam, é a protagonista do conto, e não Nogueira. Ela era vista como uma santa, um mulher de temperamento moderado, sem muitos sorrisos, sem muitas lástimas, sem muitos excessos e, aparentemente, uma mulher submissa; seu marido, Meneses, tinha um caso com outra mulher, e vivia dormindo fora de casa uma vez por semana, alegando que ia ao teatro; no início, Conceição não gostou, mas depois “acabou achando muito direito” (p. 83). Temos o exemplo de uma mulher com status social perfeito, para a época oitocentista: casada, santa, uma mulher objeto e boa, muito boa, tão boa que aceitara hospedar o sobrinho do casamento da ex-mulher de seu marido. Em sua casa, mantinham-se certos “costumes velhos”, como dormir cedo: às dez todos iam pro quarto, às dez e meia a casa dormia.

Ao adentrar na sala, onde Nogueira esperava pelo horário da missa lendo um livro, Conceição, em passos calmos, “vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura” (p.84), o que remete a uma situação de intimidade. Segundo Nogueira, ela passava “um ar de visão romântica” (p.85), o que já nos faz pensar que ela deixou de lado, nessa noite, a aparência de mulher sem excessos, só boa e santa. O que ela fazia acordada? Não tinha o costume de dormir um pouco depois das dez? E por que o roupão?

Conceição tenta manter diálogo com Nogueira de qualquer forma, fazendo comentários tais como: “Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme. E sozinho! Não tem medo de almas de outro mundo? Eu cuidei que não assustasse quando me viu.” (p.65, negritos meus). Essa tentativa nos remete a duas questões:

  1. Por que, afinal, bater na tecla de que Nogueira estava sozinho na sala? Foi uma escolha dele, por que isso a importava? Além do mais, o jovem não estava totalmente sozinho, lia um romance que o consumia.

  2. Ao levantar no meio da noite e ir pra sala conversar com Nogueira, seria Conceição a tal alma de outro mundo? Afinal, configurava-se em outra, a postura de mulher objeto dava lugar a postura de mulher sujeito, na essência.

A conversa segue, falam sobre diversas banalidades, falavam sobre tudo: da missa, sobre literatura (quem dera ser banal falar de literatura hoje), quadros e afins. Mas não ficou só nisso. Parece haver um jogo de sedução por parte de Conceição, que ao conversar com Nogueira “passava a língua pelos beiços para umedecê-los” e em seguida cruzava os dedos e pousava sobre eles o queixo, tendo os braços na cadeira (lembrado que braços, naquela época, eram “alvo” de admiração, Machado de Assis, inclusive, tem um conto chamado Os braços), tudo sem deixar de fitá-lo com grandes olhos espertos.  Outra passagem importante é quando o moço faz o comentário “Que velha o quê, D. Conceição?” e logo declara que “Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha gestos demorados e as atitudes tranquilas” (p.86).

O assunto da conversa é circular, não há muito que se dizer, há apenas a vontade de se segurar o diálogo, principalmente por parte de D. Conceição que, sempre que Nogueira terminava uma narração ou explicação, logo inventava outra pergunta. Portanto, quem mais fala é Nogueira, e entre uma fala ou outra ele descreve observações como estas no conto:

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. […] As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertava-me mais ainda que o livro. (p.86)

Dentre as tantas impressões de Nogueira dessa noite é que, talvez, Conceição tenha dado conta de seu deslumbramento por ela, e mais uma vez afirma não saber direito o que se passara: “Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me” (p. 88). Há, aí, mais uma questão para pensar: que naquela noite Nogueira não tenha entendido a situação: tudo bem. Mas não entender isso anos depois, já adulto, parece o ápice da dissimulação.

Embora tivesse a intenção verdadeira de ir à missa, Nogueira, durante a conversa, trazia a preguiça na alma e se esquecia do compromisso e da igreja, só não se esquecia de tirar os olhos de Conceição, que lhe contava coisas com “doçura e com graça” (p. 89). A conversa ia morrendo, o silêncio tomando conta da noite e da rua; a hora da Missa do galo chegava.

O silêncio era tamanho que se ouvia um camundongo roer algo no gabinete da casa, porém esse terminou no momento em que uma voz bradava do lado de fora: “Missa do galo! missa do galo!” (p.89). Era o vizinho que Nogueira ficara de acordar, mas que, como destaca D. Conceição “você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você.” (p. 89). O que ela quis dizer é que o vizinho despertou o moço de seu “embebedamento” pela dona da casa, ele estava em transe, em deslumbramento. Ao final, Conceição se declara culpada da situação.

Durante a missa, o jovem pouco se concentrava. Em sua mente a figura de Conceição se interpôs entre ele e o padre. Já no outro dia, a dona voltava-se ao plano de mulher objeto, boa esposa e santa, e mostrava-se indiferente ao que Nogueira contava sobre a missa. Era como se não houvesse existido a noite anterior. A ela, o que valia era as aparências, seu status perante a sociedade, embora sendo traída pelo marido, era boa mulher, e esta aparência é que queria manter.

Ao fim dessa análise e simplificação dos fatos, podemos especificar de maneira concreta a dissimulação, não só de Nogueira como de D. Conceição.

Nogueira diz não entender o que se passara aquela noite, no entanto, tem todos os fatos guardados em sua mente, como se o fato tivesse ocorrido ontem, lembra dos assuntos discutidos até os braços de Conceição. Narra com uma perfeição tão incrível que mais parece uma fotografia. Oras, como, então, ele não entende muito bem o que aconteceu naquela noite? No ato da narrativa já é um adulto, no mínimo tem em mente que aquilo foi um jogo de sedução. Se houve, de fato, alguma coisa naquela noite, isso Machado de Assis não nos deixa pistas claras.

Na personagem Conceição a dissimulação é bem clara. A mulher pacata e de atitudes tranquilas se transformou em outra durante a noite. Teria ela calculado todos os seus atos antes? Se seu costume era dormir cedo, o que ela fazia acordada? Conceição se transfigura: vai da mulher objeto, submissa ao marido e mergulhada nas convenções sociais, para a mulher sujeito, dona de si e de seus atos, com uma personalidade nada pacata. Já no outro dia, volta ao posto de santa, boa mulher, boa esposa e finge que nada aconteceu na véspera.

Ainda vale destacar que, depois da Missa do galo, Nogueira vai passar as férias longe do Rio de Janeiro. Ao voltar, Meneses havia falecido de apoplexia e Conceição estava em Engenho Novo, mas não a visitou. Tempos depois, descobriu que ela havia se casado com outro, o escrevente juramentado do marido. E eis aqui mais uma questão inquietante: Conceição já conhecia esse escrevente de longa data? Já tinham um caso? Isso fica para nós leitores decidirmos. Pensemos!

Referência:

Machado de Assis: Contos consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

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