Federico Andahazi e “O Anatomista”: o descobridor da pátria de vênus

0

Uma narrativa envolvente, que trata de temas considerados ‘tabus’ durante a Idade Média. Assim pode ser definida a obra de Federico Andahzi, “O Anatomista” 

federico-andahazi
Federico Andahazi, autor de “O Anatomista”.

 Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!

 John Donne

No ano de 1996, vinha à luz das publicações, na Argentina, O Anatomista, o primeiro romance do psicanalista Federico Andahazi. O livro virou um Best-seller, sendo traduzido para vários idiomas. Andahazi escreveu outras obras relevantes como O Segredo dos Flamengos, As piedosas, Errante en la sombra, La ciudad de los hereges e mais  alguns títulos; nenhum, contudo, obteve  tanto  sucesso quanto  seu livro de estreia.

Há quem rotule O Anatomista, creio que equivocadamente, como literatura erótica. Uma vez que há belas obras do gênero, não seria uma ofensa, todavia seria injusto com o romance. Apesar de o protagonista da narração ser um homem, esse é um livro sobre mulheres, sobre a descoberta do prazer, sobre a difícil condição de ser mulher na Idade Média, em que o sexo feminino era posto numa condição de origem de, praticamente, todos os males da sociedade. No livro A Civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff, há uma passagem que remete bastante à temática de O Anatomista:

[…] Nesta sociedade militar e viril, com a subsistência sempre ameaçada, e onde, por conseguinte, a fecundidade era antes uma maldição (de onde a interpretação sexual e procriadora do pecado original) do que uma benção, a mulher não era honrada. E parece que o Cristianismo pouco fez para melhorar sua posição material e moral. Ela é a grande responsável pelo pecado original. E, nas formas de tentação diabólica, ela é a pior encarnação do mal. (página 285)

No romance há a história de duas mulheres: Mona Sofia e Inês de Torremolinos e, também, de um médico, Mateo Colombo. A narrativa ambienta-se na Itália medieval e registra a “saga” de Mateo, um médico de renome por suas quadras, que passa grande parte de sua vida pesquisando a anatomia humana, como manda seu encargo, além de ser professor da cátedra. Aos 42 anos, o médico encontra-se enclausurado na Universidade em que se formou em Cirurgia, acusado de satanismo, bruxaria, blasfêmia e provavelmente, no futuro, a uma quase inescapável condenação à fogueira. Preso, Colombo apenas observava o mundo por uma janela, de onde podia espreitar:

Os últimos alunos que transitavam junto à janela do claustro de Mateo Colombo ficavam nas pontas dos pés e olhavam para o interior; então o anatomista podia ouvir os murmúrios e as risadinhas maliciosas daqueles que, até ontem, tinham sido seus alunos, e mesmo dos que poderiam ter chegado a tornar-se seus fiéis discípulos. Podia vê-los. (página 28)

É por via do cárcere do personagem que nós, leitores, conhecemos o motivo que o levou a tal desventura. Mateo Colombo, por ser um grande cirurgião, viajava muito, para fins de estudos e, também, para atender enfermos de várias regiões da Itália. Num desses itinerários, conheceu uma mulher espetacular, de inigualável beleza: Mona Sofia, A Puttana. Particularmente, os capítulos do livro que se referem à história de Mona Sofia são os mais interessantes do romance, há neles requintadas descrições de uma época conturbada religiosamente, além de boas informações sobre a condição feminina no período medieval. O fato é que tal mulher, quando criança, foi roubada do colo da mãe e traficada para um puteiro, comandado por Donna Sidonna. A mulher pegou Mona ainda bebê e cuidou da garota. No período de aprendizagem da fala, incentivava a criança a chamá-la de mãe e foi numa dessas tentativas que a dona do bordel abriu mão da pupila, por pensar que a miúda fosse cria da besta:

– Puttana… – disse com uma pronúncia perfeita, e acrescentou – me dá dez ducados.
Aquelas foram as cinco primeiras palavras de Ninna (Mona Sofia). Donna Sidonna fez o sinal da cruz. Se pudesse, sairia correndo do quarto… Donna Sidonna decidiu que aquelas cinco palavras eram um sinal indubitável de que a pequena estava possuída pelo demônio… Antes de brotarem mamilos em seu peito, antes de ganharem a dureza das amêndoas e o diâmetro e a textura de uma pétala, Ninna foi revendida a um traficante por dez ducados… Em certa manhã de verão, foi leiloada em praça pública junto com um grupo de escravos mouros e jovens putas, oferecida a peso e finalmente vendida para Madonna Creta, uma alma filantrópica que, entre outras coisas, era dona de um bordel em Veneza. (páginas 55/56)

Aos cuidados de Creta, houve uma tentativa de se iniciar a garota no ofício de prostituta, mas não passou de tentativa. A iniciação foi, ao mesmo tempo, o fim para a dona do bordel. O primeiro cliente, Girolamo di Benedetto, no momento da felação, teve a glande de seu membro arrancada e mastigada por Mona Sofia, ação que o levou  à morte. Madame Creta se desfez do cadáver do cliente e também da moça (vendendo-a).  A “próxima parada” para Mona Sofia foram as mãos de Mássimo Troglio,  autor de Scuola di Puttane (Veneza, 1539). Mássimo encantou-se por ela: “Mona Sofia era a síntese de todas as putas num corpo de menina, uma espécie de extrato de puta em estado puro.” (página 66).

A garota começa a atender os clientes da Scuola di Puttane, sem dar maiores problemas ao dono do estabelecimento, pois ali Mona Sofia, além de trabalhar, ganhava educação. Aprendeu a ler e escrever, aprendeu a mitologia e sabia grego e latim. Mona ficou com Mássimo durante alguns anos e, aos 13, com uma faca em mãos, ameaçando se matar, livrou-se de seu “criador”.

O personagem de Federico Andahazi usou a anatomia para muitas descobertas.

Num outono em Veneza, Mateo Colombo conhece Mona Sofia, mulher adulta e experiente, tinha 15 anos. Sua graça não passou alheia por ele e, durante dias, o médico ia visitá-la com o pretexto de fazer-lhe um retrato (pintura). O homem tentou seduzi-la inúmeras vezes, porém foi em vão. Mona Sofia não cedeu aos desejos de Mateo que, desolado, voltou a Pádua com uma convicção: “conseguir um preparado que pudesse apoderar-se da volátil vontade das mulheres.”(página86)

Sua descoberta estaria próxima. O Anatomista foi chamado para socorrer a viúva de um marquês, ela era Inês de Torremolinos. A mulher estava muito enferma, quase inconsciente. O homem observava os sinais do corpo de Inês: examinava os olhos, a garganta, até despi-la por completo para averiguar todo o corpo.  Minuciosamente, o homem “especula” o sexo da viúva e percebe uma certa protuberância. Intuitivamente, Mateo começa a friccionar aquela inominável parte do corpo:

Mateo Colombo não cessava de friccionar aquela protuberância entre os dedos, à maneira de quem fricciona um galho numa pedra para obter fofo. De repente, como se finalmente ele houvesse conseguido acender a faísca de uma fogueira, todo o corpo de Inês foi abalado por uma grande convulsão que a fez levantar os quadris, ficando sustentada pelos calcanhares e a nuca, como um arco. Pouco a pouco sua cintura começou a se movimentar, acompanhando a regularidade, o ritmo dos dedos do anatomista.” (página 114)

O Anatomista “ressuscitou” a mulher com suas fricções, ou seja, através do prazer. O médico, então, passa uma temporada com Inês, e a experiência é retomada incontáveis vezes. O médico, porém, precisava de provas contundentes de sua exploração, para isso partiu atrás de novas “experiências”, para comprovar que havia descobertosua “América”, sua Pátria de Vênus. O anatomista fez o teste com 107 mulheres e com todas obteve sucesso. O cirurgião registrou tudo em seu livro De re anatômica.

Obviamente, com tantas testemunhas, seu segredo é reveladoe, por isso mesmo, o anatomista fica prisioneiro, aguardando seu julgamento para, possivelmente, ser condenado por ações satânicas e hereges. A descoberta da América, ou seja, do clitóris poderia, ao fim, custar-lhe a vida? Mateo, com seu descobrimento, conhecera a glória e a desgraça:

o-anatomista

Sua, obra decerto, não foi menos extraordinária que a do seu homônimo. Ele também descobriu a sua ‘América’ e, como ele, soube da glória e da desgraça. E soube da crueldade. Mateo Colombo, ao fundar a sua colônia, não teve mais escrúpulos nem piedade que Cristóvão. O madeiro da haste fundadora não estaria fincado nas tépidas areias do trópico, mas no centro das terras descobertas que reclamou para si: o corpo da mulher. (página 31)

Enfim, o livro de Federico Andahazi pode ser uma boa descoberta, por seduzir  quem o lê. Assim como seu anatomista, que fez uma verdadeira cruzada pelo corpo feminino, fica o convite ao leitor para desbravar a “anatomia dessa história”.

O Anatomista
Federico Andahazi
L&PM Pocket

Não há posts para exibir