A formação dos Olhos de Oceano

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Detalhes que surpreendem em Olhos de oceano, primeiro romance de Maria Luiza Artese, colaboradora do Homo Literatus.

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“Essa garota vai dar trabalho. Nasceu com os trovões” (p.18)

Assim disse o pai da menina, inconsciente da própria profecia. Seria apenas um nascimento peculiar, mas as tempestades verdadeiras vieram quando a menina cresceu e passou a sentir o mundo em si, desbravando Olhos de Oceano. Quem conta a história é Laura, a menina destinada a dar trabalho, neste romance que é o primeiro livro de Maria Luiza Artese (nossa colaboradora aqui no Homo Literatus) .

A protagonista revela sua infância e adolescência, com seu quase total isolamento do mundo, em parte pela frágil saúde, com alergias e ‘-ites’ a acompanhando desde cedo e a prendendo em casa, em contraste com a disposição física dos habitantes da vila onde ela morava com a família, um povoado a beira-mar onde as crianças se juntavam em um cardume risonho na praia. Somando a isso, que Laura vem de uma família cuja origem é motivo de estranhamento por parte dos moradores, pouco acostumados a lidar com peixes diferentes de seu padrão, acompanhamos não apenas o crescer de Laura, mas seu desajuste no mundo.

Ela tem uma irmã mais velha, Lucia, embora o laço pareça mais sanguíneo do que afetivo.O estranhamento entre elas é tanto que a narradora se pergunta se ela e a irmã são filhas do mesmo pai. As poucas falas entre elas não são diálogos, apenas folhas secas prestes a cair no mar e serem levadas por ele. Amigas no colégio? É, tem uma menina com quem Laura troca confidências e algumas falas. A protagonista já não está tão deslocada, embora continue estrangeira na vila. Mas há uma marca mais profunda neste anos iniciais dela: Victor.

Unidos por acidente, Laura passa a namorar com o garoto mais velho, a quem ela só olhava após meses se perguntando se o rapaz nunca olharia para ela, com tantas meninas mais velhas (e saudáveis) por perto. Há algo nela que o atraí, embora Laura pouco fale diretamente sobre isso. Mas ela vê nele um porto seguro, tenta sempre desbravar sua alma entregue nos Olhos de Oceano, pois o namoro deles deixa de ser algo ligado à adolescência e evoluí para algo forte o bastante para marcar a sua vida. Vivendo juntos e atravessando intempéries de ambos os lados, entre elas a mãe dele em recusa a encarar o mundo após um luto e a família da narradora em progressiva fragmentação, acompanhamos não mais uma retrospectiva de Laura, mas sim a sua formação.

Ou suas braçadas enquanto reage ao que lhe acontece, moldando seus sentimentos em meio aos trovões externos – Victor trabalha desde cedo, e quando envelhece, tem de se ausentar da casa a serviço, e fisicamente Laura se vê sem seu porto seguro. E internamente também há tempestades, desde suas tentativas de compreender águas passadas até a manhã em que ela acorda, de fato, encharcada, tudo contado em sua atmosfera de introspecção oceânica, principalmente nas marés menos amistosas. Às vezes, Laura parece não reconhecer seus arredores, mesmo tendo crescido fisicamente neles; suas memórias vêm como pequenas ondas, como uma amiga (ou o mais próximo disso) dos tempos de colégio que evita a imagem (e o real) de Laura, ampliando sua vista, mesmo esclarecendo pouco.

Olhos_de_oceanoA forma como Olhos de Oceano é contado, dos anos de infância e adolescência até a idade adulta, lembra a estrutura de romances de formação, e possibilita interpretar o que o personagem se torna tanto aos próprios olhos quanto aos alheios, embora estes sejam mencionados indiretamente pela narradora. Isso não significa que a visão dela seja a única – sua voz predomina, mas há uma segunda voz, noutra parte do romance, que complementa a narração de Laura, e surpreende por sua presença nada explícita durante o enredo. A soma desses elementos com o conjunto de metáforas e o tom introspectivo de Olhos de Oceano proporciona um mergulho interior.

Olhos de Oceano
Maria Luiza Artese
150 páginas
Editora Vocábulo Um, 2014

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