Gosto x Entendimento

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Gostar e entender uma trama não são a mesma coisa, apesar de muitas vezes confundirmos as noções

Autoria: Darren Thompson

“Você não gostou porque não entendeu”, diz aquele nosso amigo, com a expressão contrariada, após manifestarmos uma opinião negativa sobre o livro que ele nos indicou. Mas será mesmo que o gostar é diretamente proporcional ao entendimento? A decepção do amigo é compreensível: colocamos muita expectativa em cima da apreciação do outro; já que gostamos muito do livro, queremos que o outro passe pela mesma experiência rica de aprendizado e liberação de emoções que vivenciamos durante a leitura. No entanto, devemos aceitar que isso nem sempre ocorrerá. A percepção do outro será, forçosamente, diferente, ainda que ele também goste do livro. Isso porque a interpretação é influenciada pela nossa carga de subjetividade. Impossível impor nossa visão ao outro; no máximo, podemos compartilhar impressões.

Após aceitar que a percepção de uma obra é um processo individual, que pode corresponder em parte, mas jamais totalmente, à visão do outro, passemos à questão principal: gostar e entender são a mesma coisa? É evidente que existe uma relação entre as duas ações, porém elas são distintas. O entendimento é objetivo: quando possuo noções técnicas de escrita ficcional, por exemplo, posso julgar a qualidade estética daquela obra. Se percebo os recursos narrativos utilizados pelo autor para gerar determinados efeitos no leitor, tais como o medo, a comoção, a reflexão, a quebra de expectativa, etc, posso dizer que entendi a obra, isto é, compreendi o que ela representa, a que se propõe, como é construída. O gostar, porém, é outra questão, muito mais pessoal. Se o livro mexeu com minhas emoções e me causou sensações positivas, ou mesmo incômodas, porém que me levaram a modificar minha visão de mundo e me ajudaram a lidar com minhas questões particulares, posso dizer que gostei dele.

Não explicamos por que gostamos de uma obra. Explicamos a apreciação, ao enaltecer as qualidades da escrita. Mas teríamos que nos expor demais para justificar nossas preferências: a obra favorita revela muito sobre nosso universo íntimo. O gostar, portanto, tem caráter confessional. É arrebatamento, identificação. O entender, em contrapartida, é técnico. Trata-se da capacidade de analisar uma obra criticamente, com embasamento teórico e estabelecimento de comparações.

Claro que tendemos a gostar daquilo que compreendemos bem, pois consequentemente, conseguimos apreciar mais profundamente, e vice-versa: procuramos destacar as qualidades do que já gostamos, entender por que fomos levados a tais sensações, defender nossas preferências. Também acontece de não conseguirmos entender tal obra por má vontade: se não é uma leitura fácil, se não nos arrebata logo de início, desistimos e podemos perder uma experiência enriquecedora. Porém, às vezes insistimos na leitura, consultamos referências, até conseguimos ter uma percepção mais ampla da obra, e mesmo assim aquilo não nos agrada de fato. Isso acontece com trabalhos acadêmicos, por exemplo: por profissionalismo, o crítico literário deve analisar os mais diversos tipos de obras, mesmo que estas não correspondam a suas preferências pessoais. Se ele não avalia a obra dentro de seu gênero e do público a que se destina, sua análise recairá num impressionismo fajuto e será pouco útil ao leitor. O crítico precisa, por mais difícil que seja, diferenciar o juízo de gosto do juízo de valor.

O mesmo princípio serve para o cinema, a pintura, e todo tipo de arte. Poderíamos ainda explorar questões mais complexas, como qual a verdadeira função da arte, se é que ela de fato a possui, mas então cairíamos numa espiral infinita de problematizações. Basta concluir que a afirmativa “Você não gostou porque não entendeu” nem sempre é válida. Ainda que tenhamos dificuldade em diferenciar nossa percepção objetiva (entendimento) da subjetiva (gosto), é possível gostar de uma obra mesmo sem saber explicar o porquê, assim como é possível entender a proposta estética do autor, mesmo sem ter gostado pessoalmente da obra. Em vez de soltar essa máxima rancorosa, deveríamos tentar discutir de modo mais profundo sobre a obra em questão, entender por que o outro não gostou do nosso amado livro, e ampliar nossa visão da obra pela percepção alheia. Talvez ele tenha entendido até bem demais, e por isso percebeu algum aspecto crítico que deixamos passar pelo tanto que fomos atingidos pelo texto. Precisamos parar com o hedonismo literário, que nos leva a buscar só aquilo que nos agrada e grupos que compartilhem da nossa preferência, porque isso limita nosso universo. Se o gosto não é modelável, ainda que possa se modificar com o tempo, o entender sempre pode ser complementado: só temos a ganhar com isso.

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