Em tempos tortuosos, em que o preconceito impera, Por que calar nossos amores? é um grito e um alento vindo dos ecos dos nossos antepassados, dando voz e visibilidade à literatura com temática homoerótica, sacramentando, assim, o amor entre iguais
Silêncio. O silêncio sempre se fez presente para que existisse, de fato, um sentido. Ou seja, ele (res)significa.
Amor. O amor surgiu quando o silêncio se fazia presente no momento em que os olhares dos românticos se cruzavam, pois no instante em que houve um silêncio, voluntário ou involuntário, a vida foi se transformando e dando sentido à existência: o amor. O amor de diferentes formas e gêneros. O amor entre iguais: silenciado e subvertido ao longo dos tempos como marginal.
E foi nessa mistura do silêncio e do amor entre iguais que a editora Autêntica lançou o livro “Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina.” Os tradutores tiveram a delicadeza e a paciência de buscar informações da época da Roma Antiga.
No prefácio do livro, o tradutor Márcio Meirelles Gouvêa Júnior faz um breve histórico acerca dessa Roma clássica no que diz respeito às orgias sexuais e às relações de poder de seus imperadores, mas também “das relações privadas em que a sexualidade tinha outro registro, o do afeto, do humano desejo de uma pessoa por outra”.
Já na apresentação, o tradutor Guilherme Gontijo Flores diz que “nossos modos de definição para heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, etc. simplesmente não se aplicam ao modo como os romanos encaravam sua própria vida sexual”. Na verdade, não havia uma normatização sexual romana, as pessoas apenas viviam o que sentiam sem se adequar a possíveis regras, mesmo numa forte/estrutura patriarcal. Deve ser por isso que, nas letras romanas, a homossexualidade masculina é mais forte. E esse desejo/afeto ao igual é mostrado com beleza nos poemas do livro, bem como algumas informações sobre cada poema e a vida e obras de cada poeta mencionado.
Vejamos:
- (Cícero, Da natureza dos deuses) – Quinto Lutácio Cátulo
Eu levantei saudando a Aurora que surgia,
Mas súbito surgia Róscio a leste.
Peço perdão por vos citar, deuses celestes:
Mortal, era mais belo do que um deus.
Aqui um poema de amor assumido entre Cátulo e Róscio, citado pelo poeta Cícero como um assunto vergonhoso, conforme notifica o tradutor na nota.
Catulo 48 – Caio Valério Catulo
Os teus olhos de mel, Juvêncio, se eu
os pudesse beijar continuamente,
continuamente eu beijaria até
trezentos mil sem ver-me satisfeito
nem se mais densa do que espigas secas
fosse a messe dos beijos meus e teus.
Em grande parte dos poemas relacionados ao poeta Catulo há uma forte menção a Juvêncio, que foi um adolescente pelo qual Catulo dedicou vários poemas de temática amorosa, segundo o tradutor João Angelo Oliva Neto. Percebemos nesse poema e em outros a doçura e a delicadeza do poeta ao se referir ao amado.
Poema 13 (5, 83) – Marco Valério Marcial
Vens, fujo. Foges, vou. Eis minha mente, Díndimo.
Não teu querer: eu quero o não quereres.
Poema 43 (11, 58) – Marco Valério Marcial
Quando me vês querer, já com tesão, Telésforo,
pedes muito. Supõe que eu negue! Posso?
Se após jurar eu não disser “darei”, subtrais
O que te dá poder em mim, as nádegas.
E se o barbeiro então, navalha em meu pescoço,
pedir a liberdade e mais riquezas?
Prometerei, quem pede ali não é barbeiro,
é ladrão: medo é força imperiosa.
Mal, porém, a navalha do barbeiro eu quebro: a ti
nada farei. Mas já na crua lã, meu pau
“Fuck you” dirá à cúpida avareza.
Dois poemas de Marcial, citado na introdução que antecede aos seus como “a musa pederástica” (moûsa paidiké, no dizer grego, a musa puerilis na forma latina), têm relação com a poesia de amor entre homens. No primeiro, existe a vontade do querer e do não querer: a dúvida; no segundo, a aspiração e o medo pelo outro, no afã do desejo.
(CIL IV 5296)
Quem me dera enrolar em meu pescoço os teus bracinhos
e roubar beijos dos teus labiozinhos tenros
vai, garotinha, e confia cada gozo aos ventos
confia em mim, por natureza os homens são levianos.
Enquanto sempre louca e insone atravessei a noite
pensando a sós em tantas coisas: muitos a Fortuna alçou
e depois os oprime súbito precipitados;
também Vênus súbito une os corpos dos amantes
E o dia afasta < ?? >
Não há uma referência de quem seria a mulher que o escreveu, mas segundo o tradutor, se trata de um eu feminino que se dirige a uma moça mais jovem. Um dos poucos poemas citados no livro com temática homoerótica feminina.
Poemas embalados por desejo, medo, dúvida, força, devassidão, sexo, afeto e amor. O conjunto dá uma mostra de que é preciso falar o que se sente e do desejo de se ter o “outro”, até mesmo por imposição, com pitadas da dúvida do querer, como qualquer relacionamento humano. Uma obra delicada e grandiosa, evidenciando o cuidado apurado dos poetas, sensíveis à beleza dos versos. Além disso, prova que o amor entre iguais sempre existiu. A confirmação são os escritos recheados pela intensidade das paixões amorosas e desse desejo natural ao outro, independendo do gênero.
Em tempos tortuosos, em que o preconceito impera, esse livro é um grito e um alento vindo dos ecos dos nossos antepassados, dando voz e visibilidade à literatura com temática homoerótica, sacramentando, assim, o amor entre iguais. E, aparentemente, silencioso, nos informa da naturalidade pelo qual os romanos se relacionavam, contribuindo também ao entendimento e ao respeito às diferenças.
“Quando num beijo semiaberto
Eu beijo meu garotinho
e a doce flor dos alentos
carrego no atalho aberto,
minha alma fraca e ferida
vem correndo junto aos meus lábios
e o ricto fácil da boca
e os leves lábios do moço
fendidos pela passagem
ela busca atravessar.
Se houver a menor demora
ao colarmos os beijinhos,
louca no fogo do Amor
ela atravessa e me deixa,
numa ação miraculosa:
para mim estarei morto
dentro do garoto eu vivo.
(Aulo Gélio – 130 – 180 d.C)
Que a partir desse silêncio surja música para inibir aqueles que tentam/fazem calar os amores entre iguais, pois “Que cada um cante seu amor – o canto acalma.”