Inquietações e alertas nos poemas de Affonso Romano de Sant’Anna

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Em seu livro Sísifo desce a montanha, o poeta Affonso Romano expõe inquietações, alerta-nos sobre o perigo de viver e retoma o mito de Sísifo

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Affonso Romano de Sant’Anna

Inquietações sobre a vida, a morte, o universo, o misticismo, a natureza e seus animais estão presentes ao longo do livro de poemas Sísifo desce a montanha, de Affonso Romano de Sant’Anna, poeta mineiro, também conhecido por ser crítico literário e companheiro de vida e escrita de Marina Colasanti.

Além de tantas inquietações e até questões existenciais postas no livro, o eu-lírico dos poemas parece questionar, por meio de uma ironia refinada, as verdades ditas absolutas, impostas pela TV e pela mídia de modo geral.

Outra marca importante desta obra é um constante diálogo com a história, mantendo pontes com as gerações passadas e as atuais, de modo a mandar uma espécie de recado para as gerações futuras. Recado este que nada mais é algo como: prestem atenção no mundo que se degrada a nossa frente, é preciso lutar por dias melhores.

No poema “As nuvens”, o eu-lírico menciona:  “A natureza / não tem preocupações morais. / A natureza não mata / nem odeia. / Ou melhor: / mata e ama / de igual maneira / e todo movimento / é desejo / de viver.” (SANT’ANNA, 2011, p.  23).  A natureza, ao contrário dos seres humanos, não tem ódio, não faz maldade por simples sadismo e satisfação. O desejo dela é viver de modo intenso, refazer-se a cada dia, prosperar. Mesmo a morte, quando presente na natureza, tem um objetivo que não é apenas matar, mas recriar, renascer.

Os animais se fazem presente também. Estão, no livro, os sapos, os gatos, os cachorros, os touros e os cavalos. Há uma preocupação ecológica nos poemas de Afonso Romano, a qual deveria também ser preocupação de todos que enxergam os animais como uma espécie inferior, posta ou como meio de consumo (alimento) ou como meio de amenizar a carência de companhia.

Em “Alívio”, o eu-lírico menciona as estranhezas e tristezas deste mundo e demonstra alívio em não mais estar aqui, onde os carros entopem as artérias das cidades, onde temos de nos abaixar pra não ser alvo de bala perdida e não ser, desse modo, mais um corpo anônimo em uma esquina qualquer. Há insônia, há medo, há temores, há desejo “de escapar dos guichês / dos balcões / das filas / dos aeroportos / onde os vivos são cifras e números natimortos” (p. 39).  Ao partir, haverá alívio por não ver atrocidades expostas na TV, sejam de cunho político ou ecológico, como tsunamis e vulcões que transformam tudo em cinzas. Diz o eu lírico: “enfim / alívio / de me despedir do mundo / antes que o mundo se despedaça de mim.” (p. 40).

“A morte despovoa meu presente / E torna denso o meu passado.” (p. 61), trecho do poema “Gerações 2”. Neste poema e em tantos outros, a morte se faz bastante presente neste livro de poemas de Affonso Romano, é difícil precisar se porque esta é uma preocupação posta na boca do eu-lírico, ou apenas um desejo de entender ou até mesmo desvendar este mistério que é a morte, bem como o que ela nos reserva.

O poeta é posto como um carpinteiro “aplainando ferozmente / as palavras” (p. 49). Além disso, como boa parte dos poetas, o exercício da escrita também é colocado em questionamento, lado a lado com o ato de envelhecer. Em “Vício antigo (2)”, o eu-lírico pergunta como um homem pode, com os seus 72 anos  na cara, ainda sentar frente a uma folha em branco para escrever poesia, tantas outras coisas poderiam ser feitas “Não seria melhor investir em ações? / Negociar com armas? / Exportar alimentos? / Ser engenheiro, cirurgião / ou vender secos e molhados num balcão?” (p. 97). Esse homem, inevitavelmente, remete-nos a figura do poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna que há anos escreve e tem dedicado seus poemas às gerações que se sucedem, mostrando-nos que poesia não são versos sem sentido, mas um projeto poético que nos leva a reflexão e a sermos seres pensantes. Esse poema termina, ainda, com o seguinte questionamento: como que um homem desta idade “continua diante de uma folha em branco / espremendo seu já seco coração?”. Resta-nos a pergunta: E quem foi poeta, um dia deixa de sê-lo? É como se o coração do poeta pulsasse não dentro do peito, mas, sim, em seus versos poéticos.

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O mito de Sísifo | Ilustração: autoria desconhecida

Em relação ao título Sísifo desce a montanha, ele remete ao mito de Sísifo que, de acordo com a mitologia grega, era o mais astuto dos mortais, um grande rebelde, chegando a ser considerado um dos maiores ofensores dos deuses. Em função de um castigo, rolava diariamente uma pedra acima de uma montanha até o topo. Depois disso, com Sísifo cansado em função do peso da pedra, esta acabava rolando até o chão. No outro dia, ele deveria começar tudo novamente, todos os dias. A punição era um modo de castigar e envergonhar Sísifo por suas habilidades em tomar e enganar os deuses.

O escritor Albert Camus retomou o mito para escancarar que a vida dos homens (no sentido de seres humanos) era igual ao mito Sísifo, pois seguem uma rotina diária, maquinalmente e cegamente, uma vida que é determinada por instâncias como a religião e o sistema capitalista¹. Nesse sentido, ao retomar no mito em seu título, Sant’Anna parece querer nos chamar atenção mais uma vez, assim como Camus fez, para perigo de viver sem refletir nossas ações, que por vezes são repetitivas e sem sentido; parece tentar abrir nossos olhos para enxergarmos o perigo dos dias marcados pela violência cotidiana e para enxergarmos, ainda, o perigo de perder os bens naturais que temos e apenas exploramos incansavelmente, de modo mecânico e destrutivo.

 

¹Mais informações sobre o mito de Sísifo em: O mito de Sísifo e sua conotação contemporânea, de João Francisco P. Cabral.

 

Referência:

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Sísifo desce a montanha. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

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