A leitura zapping em ‘Eles eram muitos cavalos’, de Luiz Ruffato

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A relação da internet e de zapear canais de televisão com o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

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A literatura contemporânea apresenta uma grande diversidade de linguagem e conteúdo. Não mais presos a fórmulas ou a escolas estilísticas, os autores acabam encontrando maior liberdade de criação. Em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, acompanhamos um dia qualquer na cidade de São Paulo. Por meio da mistura de gêneros, que inclui cabeçalho, horóscopos, listas de livros, classificados, orações, simpatias, narrativas, etc., obtém-se um panorama do cotidiano local. Não se trata, portanto, de uma leitura convencional, mas sim de uma escrita fragmentada e ágil que acompanha a velocidade de nossa época.

As situações apresentadas na obra não seguem uma linearidade: começam e terminam de repente. Assim, o leitor acompanha a conversa entre um casal em crise, um homem se gabando de suas conquistas virtuais, um rapaz que demora a voltar e deixa a mãe preocupada, a mensagem na secretária eletrônica de uma mulher traída para a amante, orações de santos para proteção, simpatias para arranjar namorado… Fatos do cotidiano, vivenciados pelos habitantes anônimos das cidades grandes, quase sempre no piloto automático. Mesmo os textos não-narrativos pressupõem um leitor de jornal ou revista, sobre o qual é possível tirar conclusões. Pela exposição desses fatos na literatura, o leitor se obriga a prestar atenção em seu dia a dia, a desnaturalizar o olhar e perceber os pequenos dramas cotidianos.

A pesquisadora Ana Cláudia Viegas (2004), em artigo publicado na revista Alceu, Da página à tela ou vice-versa, denomina esse tipo de leitura fragmentada de zapping. Estabelecendo uma analogia com o ato de zapear os canais da TV, ela propõe que o leitor também zapeia as narrativas do livro de Ruffato, que, aliás, podem ser lidas em qualquer ordem, sem prejuízo do entendimento. O hibridismo dos gêneros escolhidos para compor o inusitado romance também pode ser relacionado à Internet e seus hiperlinks. O leitor moderno está acostumado a ter acesso a diferentes tipos de texto de maneira quase simultânea nos dispositivos eletrônicos. Informações rápidas, dispersas, recortadas, rapidamente assimiladas pelo homem contemporâneo. É natural que a arte sofra o impacto dessa revolução tecnológica.

Os personagens sem nome que aparecem ao longo do livro são, conforme aponta Giovanna Dealtry (2009) em Cidades em ruínas: a história a contrapelo em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato, “vozes dissonantes que ecoam novas perguntas”. As lacunas do texto deixam a cargo do leitor imaginar a continuação das histórias, dando a possibilidade de compreender e identificar-se com as vozes captadas no meio da multidão. A autora também observa que, se os romances brasileiros, até a modernidade, preocupavam-se basicamente em afirmar a identidade nacional, reconstruindo a história, a tendência dos autores contemporâneos é deslocar a perspectiva temporal para a vivência espacial. Em tempos de globalização, o foco é o “aqui” e “agora”.

Dessa forma, os curtos fragmentos de Eles eram muitos cavalos causam impacto no leitor não só pela linguagem diferenciada, que mistura tons, gêneros (o próprio título faz uma intertextualidade com o poema Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, apresentado na abertura do romance), ritmos, mas também pelas situações banais relatadas, com as quais o leitor contemporâneo pode se identificar, tomando consciência da própria realidade, automatizada pelo caos urbano.

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