Conto: Liberdade subentendida

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literatus

Era hora de parar. Seus pés doíam, o couro dos sapatos fincava como mordidas em sua pele, e cada uma de suas lembranças retumbavam na música da dor. Utilizando-se de seus instintos de caçador, resolveu seguir pela brisa que vinha das águas, já próximas do jovem guerreiro.

Vivia assim, seguindo seus instintos, dormindo ao relento e buscando o que muitos achavam que possuíam. Não tinha rancor do que a vida lhe propusera, pelo contrário, sentia-se bem por não se corromper pela ganância e crueldade impostas pelo rei. Já se perdera, não sabia a quanto tempo deixara de habitar aquele lugar, mas se encontrava em suas reflexões; no seu ciclo vicioso de encontros e desencontros.

Em sua última visita à sociedade, deparou-se com a mais intensa imposição de superioridade em sua lógica de regras hierárquicas. No centro da cidade, um dos rituais impostos pelo rei se consolidava, um pirralho açoitado, suas pernas finas em carne, sangue vermelho escorrendo e pingando no chão.

O guerreiro assistiu a tudo de uma das árvores, enquanto a população vibrava com os últimos suspiros do pequeno condenado. A partir do momento em que se é trancado nas grades subterrâneas, está-se sozinho. Sua vida é delimitada pelas paredes enlodadas e o cheiro de ratos mortos. Tornando-se uma presa, colocada em cativeiro para evitar a fuga da morte.

Enquanto o jovem descia da árvore para continuar seu caminho nômade, sua mente relutava, e ao contrário do seu corpo, queria ficar e acabar de uma vez por todas com o sofrimento que ia de vir. Abruptamente, lembrou-se: todos dali fazem parte disso, todos contribuem. Ninguém sabe quem será o próximo, eles ou a própria família, mas, o que importa? A diversão estava garantida.

O Sol começou a se pôr, e a noite inundava a sua casa provisória, seu corpo, sua mente. Suas lembranças borbulhavam como lava. Abaixando-se, fitou as águas vindas das montanhas, tocou-as com as pontas dos dedos, e com as mãos cheias, levou-as a boca, saciando sua sede.

Afinal, qual era seu problema? Por que não se divertir com os rituais? Por que não viver com e como os outros? Ele apenas não se deixava levar pela manipulação, a manada de humanos do reino se formara, e ele se afastara. Assim, continuava sua vida, na sua constante busca pelo que os outros achavam que possuíam.

Depois de viver por ali alguns dias, sentira que devia partir, sua bagagem limitava-se a um cantil, cumbucas feitas por ele, o alimento colhido em viagem, e suas escassas peças de roupa. Antes de se tornar andarilho, na cidade todos o viam como louco; seus passos eram observados, considerados rastros de pólvora, bastaria uma faísca para explodirem. E assim explodiram. Não era bem aceito, preferira partir às escondidas do que permanecer em perpétua briga com o seu eu.

Talvez, a loucura seja apenas o ponto inicial da verdade, desvinculando-se e buscando a liberdade.

 ***

Ilustração de Fernando Xavier.

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