A literatura, os clássicos e os pés na filosofia

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A filosofia carece que a Verdade se multiplique de maneira a se mostrar inalcançável, ou composta por infinitas verdades, diversas fases que não se esgotam, ou onde releituras nunca se findam em combinações.

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O debate sobre a relevância do passado para a filosofia aparece já na consolidação do que, hoje, representa para nós seu passado quase primeiro, o que é, ao menos, mais alcançável. Já que os primórdios dessa ciência foram obscuros mesmo em seu presente e nos momentos seguintes e não tão distantes, pelo pouco, e a maneira, como tudo foi registrado – pelo predomínio da tradição oral, na época.

Em Platão, temos a primeira apreciação da filosofia – o amor à sabedoria – como busca, atividade de estudar e retornar ao passado, e expressar a experiência pela escrita ou através de diálogos. Para ele, lá estão os verdadeiros “sábios”, e o que se posiciona posterior a eles é, e deve ser, apenas uma continuação, uma tentativa de recuperar, aprimorar, aquilo que já tivesse sido realizado. Para ele o contato com a sabedoria só seria possível através da retórica. A retórica que pode, de certa maneira até hoje, representar muito bem uma alternativa para percorrer, ou mesmo traçar, uma história da filosofia.

É através do estudo da história da filosofia que se pode redizer, reinventar e, acima de tudo, alcançar um entendimento mais elevado, já que sempre haverá algo subentendido, ou em situação dúbia, ou não tão bem elaborado, no que já foi pensado e produzido. O caminho contrário no tempo – a visita ao passado, como a retórica, o diálogo, ou mesmo a simples leitura – não apresenta, para a filosofia, um retrocesso, mas sim ferramenta essencial para um aprimoramento dela como tal.

Se filosofar é pensar tudo o que existe, e para alguns, até o que inexiste concretamente, percorrer a história da filosofia, visitar o pensamento em diversos momentos no tempo, representa o melhor dos caminhos. Pois se o pensamento existe, filosofar deve ser, inclusive, pensá-lo. O próprio pensamento filosófico já elaborado, ou iniciado – pois se tem como pressuposto inicial que as possibilidades de variação e elucubração sempre existam dentro de qualquer um desses pensamentos – se mostra sendo, portanto, objeto de estudo da filosofia. E dessa forma, se torna necessário descamá-lo cada vez mais, para que assim ele se torne, ou se revele, em um outro e, no futuro, em suas variações.

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A filosofia almeja a Verdade. É onde ela se sustenta e se estende. A filosofia carece que a Verdade se multiplique de maneira a se mostrar inalcançável, ou composta por infinitas verdades, diversas fases que não se esgotam, ou onde releituras nunca se findam em combinações. Dessa maneira, ela não poderá se esgotar, nem no mundo, nem em si mesma.

E já que Verdade só se tem alcance pelo saber, a filosofia tem, primeiramente, a pretensão de refletir sobre os saberes. Oficializados, como as ciências ou campos do conhecimento – filosofia da engenharia, filosofia da arte -, mas também sobre os saberes do cotidiano. Dessa maneira, é possível definir que, na realidade, a filosofia reflete, ou se esforça para refletir sobre tudo o que é sabido – já que o não sabido ela, provavelmente, ainda aspira em descobrir.

E já que ela é composta, justamente, por uma multiplicidade de filosofias, “escolas”, que convergem, se batem, bifurcam, vezes até se negam, faz-se necessário um discernimento em que seja possível que ela se enxergue em sua universalidade, mas ao mesmo tempo, alcance cada uma de suas peças, admitindo que não estão todas em um mesmo plano – de pensamento, tempo ou espaço –, mas que podem e devem se complementar.

Para reforçar, é possível recorrer a Ítalo Calvino que sequer tinha a pretensão de defender a valorização da história da filosofia. Mas que quando afirmou a inesgotabilidade de clássicos literários, reafirmou as mesmas qualidades nos clássicos filosóficos, assegurando esse principal ponto onde ambos convergem: são inexauríveis ao tempo e ao espaço.

O tempo da filosofia é um tempo próprio. Ela escapa do kronos, o tempo linear do relógio, para se consolidar, ou se compor. Não é pelo decorrer do tempo que ela amadurece. A filosofia não se enquadra na linearidade do triângulo temporal: passado, presente e futuro, como fazem as ciências no geral. A filosofia precisa do ir e vir, é dessa maneira que o tempo a influencia, como uma corrente sobre a qual ela flutua: o tempo confere a ela essa liberdade, o devir temporal.

A filosofia vê onde ninguém vê. Onde nenhuma outra ciência enxerga. Simultaneamente assiste, analisa, tudo o que existe. Não podendo, com isso, tirar os olhos de si mesma.

 

Referências bibliográficas:

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

COLLI, Giorgio. A loucura é a fonte da sabedoria. In: ________. (Org.). O nascimento da filosofia. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. p. 9-19.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.

GALLO, Sílvio. Dleuze & a educação. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008.

HUME, David. O cético. In: ________. (Org.). A arte de escrever ensaio e outros ensaios (morais, politicos e literários). São Paulo: Editora Iluminiras Ltda, 2011. p. 127-147.

PORCHAT, Oswaldo. O conflito das filosofias. In: ________. (Org.). Vida comum e ceticismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

SPONVILLE, A.C. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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