Livros ainda são poucos

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Para que servem os livros em pleno século XXI?
nassar
A Rússia foi banida do atletismo nas Olimpíadas do Rio por conta dum esquema de doping. Parece que a Guerra Fria nunca acabou para eles. A meta é alcançarem os Estados Unidos custe o que custar. “A Rússia é um erro”, ouvi dizerem dia desses. Quem paga pelas escolhas políticas é o cidadão comum, muito apegado às suas raízes. Talvez não haja melhor exemplo da representação desse sofrimento do que na literatura de Tchekhov e no recente Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch.
Nobel de Literatura em 2015, ela afirma ter recolhido mais de 500 depoimentos de pessoas afetadas pelo maior acidente nuclear da história para compor a obra. São vozes de camponeses, empresários, políticos e cientistas que foram atingidos direta ou indiretamente pela catástrofe envolvendo o reator número quatro da usina. Há a discussão se o livro é um relato jornalístico ou uma obra literária. A autora afirma ser literatura, pois não relata apenas o que está na superfície. Ela busca explicitar o âmago das situações ali descritas, utiliza-se do que se tem por artefato poético, ou seja, o modo peculiar como as ações são narradas.
Na história em quadrinhos Watchmen, um homem fica preso num gerador e é desintegrado pela radiação. Pele, ossos, órgãos, tudo é instantaneamente incinerado. Os soldados que tentaram deter o vazamento radioativo de 1986 tiveram a pele desprendida dos ossos, colocavam pedaços de pulmão pela boca, agonizavam enquanto deixavam um legado cancerígeno para seus filhos. Aristóteles diz que muitas vezes é preferível que o ficcionista se utilize de um desfecho impossível para dar sentido à realidade que criou. Foi o que Alan Moore e Dave Gibbons fizeram em Watchmen: após ser desintegrado, Jonathan Osterman retorna como Dr. Manhattan, herói que tem os poderes de um deus. Uma pena que aos heróis de Tchernóbil não foi possível dar semelhante saída.
Numa entrevista realizada na TV Brasil, o ator Pedro Cardoso fala sobre a comercialização da nudez, a imposição da pornografia. Ele diz que algumas pessoas o interpretaram de maneira errada, que leram sobre o assunto em notícias nada esclarecedoras. E ironiza: tudo o que disser será escrito num livro, pois quem quiser conferir o que ele realmente pensa, irá até essas páginas. Um professor entrevistado por Svetlana em Vozes de Tchernóbil faz mais ou menos a mesma crítica a respeito dos meios de comunicação: “Hoje em dia as pessoas têm interesse em lembrar de Tchernóbil. Estou a par do que andam escrevendo nos jornais sobre o assunto. Se bem que livros ainda são poucos. Eu, como professor, tenho que estar inteirado, porque ninguém ensina como falar do tema com as crianças”. Tudo o que chega à população são informações manipuladas pela mídia. Se elas fossem compiladas num livro, talvez estivessem seguras, pois estariam vinculadas a um único autor. Svetlana não foi apenas atrás das versões dos poderosos. A maior parte dessas vozes vem de camponeses, os mujiques da vida real, “gente que vivia sem Tolstói e Dostoiévski, sem internet, mas cuja consciência de algum modo continha uma nova imagem do mundo”.
Livro. Taí um objeto que caiu em desuso, pelo menos com relação à função para a qual foi criado. Está cada vez mais difícil ouvir alguém dizer que “está lendo um livro”. Ninguém tem tempo e o pouco que resta é dedicado às redes sociais. Se Pedro Cardoso e o professor de Tchernóbil estiverem certos, estamos sendo manipulados a maior parte do tempo. Hoje, quando os leitores têm um livro nas mão, parecem estar mais preocupados em posicioná-lo ao lado duma xícara de café e capturar o melhor enquadramento a ser compartilhado no Instagram. As estantes estão entupidas com luxuosas edições da Cosac Naify graças às abusivas liquidações promovidas pela Amazon. Mas quantos estão realmente lendo Anna Karenina ou Guerra e Paz?
Não dá para imaginar o mundo, daqui para frente, sem internet. É graças a ela que conhecemos bandas como Uncle Acid and The Deadbeats pelo Spotify, mistura de Beatles pós-“Helter Skelter” com o mais sujo Black Sabbath. Mas, digamos que haja um colapso distópico que só  Philip K. Dick pudesse imaginar e estivéssemos sem internet. O livro se apresentaria como um novo vício. Seria um retorno triunfante.

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