A loucura dos outros, de Nara Vidal, questiona a nossa frágil normalidade

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É impossível pensar a loucura sem refletir sobre o nosso conceito de normalidade

Nara Vidal

É impossível pensar a loucura sem refletir sobre o nosso conceito de normalidade. No mais tardar desde Foucault sabemos que a loucura “só existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou capturam.”[1]

Pensei nisso ao ler o livro de Nara Vidal. Os seus contos propõem uma reflexão sobre a aversão que sentimos em relação à loucura, denunciando, assim, a fragilidade da nossa razão e a tendência, quase instintiva, de excluir aqueles que não se enquadram nos padrões.

As mulheres desse denso volume, ainda que tão diferentes em seus desatinos, têm em comum sentirem-se excluídas ou apartadas da sociedade. E, insurretas, cada qual à sua maneira, buscam um (des)caminho para sua individualidade.

O livro abre com Ifigênia que, louca de amor pelo palhaço de um circo itinerante, perde literalmente a cabeça quando este deixa a cidade, abandonando-a. Sozinha e trancada no seu porão com a cabeça separada do corpo, grita e gargalha histericamente, assustando as moças da cidade com o pavor da sua perdição, mas também com o estarrecimento da sua ousadia.

Em seguida, temos a Marta, a Ana Rosa e a Vanessa que, exatamente por serem contadas através da perspectiva enviesada do marido ou namorado, têm a presença potencializada pela própria ausência.

“A mulher que dormia ao meu lado era desconhecida. Sua baba no travesseiro já não era doce. Roncava e não me deixava dormir. Os cabelos permaneceram longos não sei o porquê. Não tinham viço. As pontas alaranjadas e queima­das da vida inteira passando por ela. A cintura envolta na fita do dia do casamento ficou con­gelada nos retratos. Vanessa não se olhava no espelho: tinha medo. Um dia encostei meu pé na coxa dela e pedi desculpas.”

Depois vem a Cecília, que irá falar de um tema com potencial explosivo e recorrente, tanto no livro como no nosso dia a dia: a inatingibilidade do que sempre está ali. Enquanto já no conto anterior, o narrador denuncia o distanciamento do muito próximo, o não reconhecimento do outro simplesmente porque ele não mudou, o que temos aqui é a total invisibilidade. O fato de continuarmos os mesmos num tempo que não para, nos torna estranhos aos que avançam e estes a nós.

“Passava dias pensando se alguém ainda ia me querer. Rodo­piei os olhos e vi um homem bonito. Tenho horror a homem bonito. Gosto de beleza em esculturas, quadros, não em ho­mem. De certo eu era velha pra ele, mesmo que ele não tivesse menos que cinquenta anos. Notei a mulher que devia ser tão invisível quanto eu.”

Já Adriana, a suicida fracassada do sexto conto, também é invisível, mas impassível; não consegue nem mesmo abrir mão da própria vida, porque já se sente morta. Não há saída, porque não pode haver futuro para um presente que não existe.

Maria Dulce, o sétimo conto, marca a metade do livro e é um texto instigante e polissêmico. Encontramos nele vários temas que se desdobram em diferentes camadas pelo relato. São tratadas aqui questões essenciais como perda, medo, morte, abandono, emancipação. Numa situação limite, a narradora, uma mulher brasileira que vive na Polônia e está a caminho do Brasil para o enterro do irmão, tenta com todas as forças oprimir o passado com a família brasileira, mas as imagens e a dor emergem em ondas e se impõem à personagem como medos há tanto recalcados em busca de uma válvula de escape. A protagonista se distrai e se esvazia vivendo fantasias sexuais com homens desconhecidos, mas esses encontros furtivos só fazem intensificar as suas lembranças.

“Cheguei no apartamento às nove e meia da manhã. O homem com cheiro de suor me acompanhou até o fim da linha. Liguei o chuveiro e tentei me livrar do meu companheiro de ônibus. O ardor sufocante do suor dele nas suas roupas miseráveis tinha se fixado nas minhas narinas. Percebi que precisaria de dias até me purificar daquele cheiro, o que seria impossível, visto que eu avançava a cada hora para mais perto do enterro do meu irmão.”

Outro tema recorrente dessa coletânea e característico da caligrafia de Nara Vidal: a violência disfarçada de ternura. As personagens são como bombas-relógios, sente-se a explosão – ou, para as menos corajosas, a implosão –  iminente por baixo de uma fachada de contenção.

Por exemplo, Selma, uma doce e solitária idosa atrofiada e cansada numa casa de repouso, que “há sete anos e meio tentava ruir, despedaçar-se, desapare­cer, mas o médico e as enfermeiras receitavam-lhe esperanças e ela prosseguia com vontade de fim, mas covardemente sem grandes atitudes.” Por fim, desaba, mas parece feliz.

Ou Lúcia, que, no entanto, se destaca das outras mulheres por ser a única que não se entrega ao determinismo. Ela se ergue e quebra o ciclo de opressão e exclusão.

Já Amanda nos conta com grande resignação e leveza da violência domiciliar à qual está sujeita e da qual não consegue escapar. A autora permeia aqui a questão da manipulação emocional e interiorização da violência por parte da vítima, tornando-a incapaz de reação. Um mal que infelizmente atinge muitas mulheres vítimas de agressão domiciliar ainda hoje.

São muitas as Amandas, Anas, Marilenas, Ritas, Regeanes, Éricas. E tantas mais que parecem compartilhar o mesmo destino de opressão e desamparo, presas num círculo vicioso de violência que não conseguem quebrar, mesmo quando podem, chegando a um estado de completo alheamento de si mesmas, de total impotência e invisibilidade.

A última personagem enfim nos resgatará de certo niilismo. Íris, assim como Ifigênia, que abre o volume de contos, é da esfera do fantástico. Mas, ao contrário desta, ela opta pelo amor proibido, ainda que tenha que pagar com a vida. Então, Íris cumpre seu destino e vira borboleta.

“Atlas Gigante é o nome dela. Quando aberta tem as asas do tamanho de um prato de jantar. No seu cocoon ela resiste às piores tempestades. Quando seca a chuva, a mariposa sai do casulo e deixa cair uma gota do seu cheiro para atrair um reprodutor que viaja até três milhas atrás dela. Quando que se reproduzem, ela morre dez dias depois. Uma mariposa que nasce apesar do furor dos vendavais, com a única missão de ter alguém para se perpetuar. Uma vida curta, mas grandiosa.”

 A forma

Num jogo sutil entre contenção e detalhamento, Nara Vidal foca na diversificação de linguagens.  Cada conto fala sua própria língua. Tem o conto em forma de fábula, tem o que explora a oralidade, o jargão da prisão e o relato fragmentário, assim como aqueles que seguem uma narração linear convencional. Essa diversificação é instigante e importante para localizar as histórias em seus respectivos meios e, através da linguagem, dar o acento e o registro apropriado a cada enredo.

[1] Foucault, Michel: Loucura, literatura, sociedade. Em: Motta, Manoel Barbosa (Org.). Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2006

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Carla Bessa / Niterói, RJ - Berlim. Estudei teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Depois, coloquei o pé na estrada e vim parar na Alemanha. Trabalhei 15 anos em teatros alemães, austríacos e suíços como atriz e diretora. Os ventos mudaram e eu com eles. Atualmente trabalho como tradutora literária alemão-português para as editoras brasileiras WMF Martins Fontes e Estação Liberdade. Escrevo resenhas e contos. O meu conto “Toc” foi publicado na antologia bilíngue “Sehnsucht ist ein verdorbenes Wort / Saudade é uma palavra estragada” em 2016 pela editora bübül de Berlim.

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