Mais estranho que os livros do Bolaño? Só a realidade

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Referência à cena de 2666 em que a personagem pendura um livro no varal  (foto de Zé Valdi)

 

Eu estava armado quando aconteceu. Estava de posse de um calhamaço de mais de oitocentas páginas, o que convenhamos pode ser uma arma letal se empregada em golpes, principalmente se a vítima (não tão vítima neste caso) oferecer o crânio a esta atividade de abrir a cabeça em um aprendizado nada metafórico.

A arma em questão era 2666, o romance composto de cinco romances do escritor chileno, cuja capa na edição brasileira transmite uma aridez, tal qual o deserto mexicano de Sonora, que chega a dar sede só de olhar (mais um atributo letal desta arma poderosa?).

Ainda assim, nada pode ser tão perigoso quanto aquela trama. Pelo menos no primeiro dos cinco romances, que narra a trajetória de quatro críticos do escritor desaparecido Benno von Archimboldi. Ou melhor, narra as relações amorosas entre os críticos. Ou ainda o dia a dia narrado de forma épica. Ou quem sabe nada do que eu disse, posto que como todo leitor, não sou uma pessoa muito confiável.

Foi nesta hora, em que eu segurava o calhamaço, o ferro de apoio e mantinha o equilíbrio em um ônibus sendo guiado mais ou menos da mesma forma que se guia um comboio de bois. Foi nesta hora que dois assentos para trás de onde eu estava, um sujeito atendeu a ligação. Oscilava entre dezesseis e vinte anos, naquele delicado território onde você acha que sabe o que quer, pensa em várias opções para o futuro, mas geralmente acaba não se decidindo por nenhuma.

Foi nesta hora que ouvi um dos diálogos mais pasmáveis dos últimos anos da minha vida. Diálogo que tento reproduzir abaixo, na medida em que se pode ser fiel literariamente (quase nunca):

 

Sem discrição alguma, o sujeito passou a falar, “aí, meu. Como é que tá?”
“…”
“Não sabe onde tô indo agora. Vou lá no aeroporto. Meu padrinho tá descendo lá num helicóptero.”
“…”
“Sim, os malotes. É nota fria, mas é fácil de trocar em Blumenau. Vou nos bares, os caras nem olham.”
“…”
“Mas quem é que tá aí contigo?”
“…”
Depois mudando o tom para uma voz quase chorosa, “pô, cara. Diz pra tua irmã me desbloquear.”
“…”
“Ela é a mulher da minha vida, cara. Amo ela, pô. Velho, não consigo mais viver sem ela.”
“…”
“Diz pra ela que não vou mais traí-la.”
“…”
Aí a conversa tomou um novo rumo. Ele voltou a falar excitado, “cara, lembra daquela treta?”
“…”
“Então, a polícia tá atrás de mim, mas fica de boa. Você é de menor, não vai sobrar pra ti.”
“…”
“Mas vou nessa, cara. Me chama de mestre que esse é meu apelido. Valeu, senador?”

 

Quando acabei de ouvir a conversa, fiz um esforço descomunal para não rir. Armei uma estratégia rápida. Se não conseguisse me conter, me desmanchasse em risadas e o cara me perguntasse qual era a graça, responderia que “esse livro 2666 é realmente puta divertido.” Ou diria que não se aproximasse, pois “estou armado”, erguendo o livro como um viking segurando um machado de guerra.

Como ninguém me perguntou nada, fiquei apenas pensando em uma frase do conto Enoch Soames, de Max Beerbohm: “Não a toa dizem que a verdade é mais estranha que a ficção.”

Até mesmo que a ficção de Roberto Bolaño.

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