“Memórias de Adriano”: o livro que nos faz maiores

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Saiba por que ler Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar

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Marguerite Antoinette Jeanne Marie Ghuislaine Cleenewerck de Crayencour é o longo nome que deu vida identitária a uma menina nascida de um materno corpo morto, em Bruxelas, em 1903. Marguerite Yourcenar é o nome que recriou a identidade literária. O anagrama “Yourcenar” em relação com Crayencour era já um prenúncio do caminho único e em contracorrente seguido pela escritora que, aos 8 anos, já falava o latim e aos 12, grego, subordinada à educação privada do pai, um aristocrata, viúvo à nascença da filha.

A paixão pelo clássico, pelos idiomas, pelas culturas abriu caminho ao longo calcorrear de uma existência de vocação literária e cheia de viagens pelo mundo afora, ao encontro do outro, do diferente que “te muda porque te alonga a personalidade”, como referiu numa entrevista.

Ainda que não seja possível avaliar ou traçar o retrato da obra yourcenariana senão no seu todo, As Memórias de Adriano é talvez o livro mais impactante ao leitor. Por diferentes e várias razões.

Na parte final do livro, a autora presenteia a assistência leitora com 14 páginas de notas associadas ao processo de construção de tamanha obra-prima. Foram mais de 30 anos de avanços e recuos, de rasgar o papel e esquecer, e voltar a tentar, compor, descompor, desilusões, desânimos e amadurecimentos de lucidez.   

Meu Caro Marco Aurélio é a invocação que esvoaça o firmamento de palavras que dão corpo a esta autobiografia romanceada por quem passa toda uma vida em estreita relação de pesquisa com as culturas clássicas e o seu desdobramento, em particular, a fase dos cinco bons imperadores: a Pax Romana. Adriano governa numa altura híbrida, onde já não serviam os deuses pagãos e o Deus do cristianismo ainda não era crido no Império.

A musicalidade da escrita de Marguerite Yourcenar faz de cada linha um fio elétrico que prende os sentidos ao livro, quer no toque profundo dos detalhes ou em momentos de desenho abrangente de ambientes e pessoas, isto é, a história, à imagem da memória humana. Organizado em seis partes, Memórias de Adriano plasma um Adriano na primeira pessoa, a dirigir-se em forma epistolar ao seu filho adotivo, descendente do poder, discorrendo sobre o seu passado com uma abordagem apaixonada e uma força confessional que torna o pontifício romano para nós um homem íntimo.

Doente e com a morte à espera da sua hora, o protagonista não se consegue desfazer do romance vivido com o jovem Antínoo, que levou ao suicídio do seu amante. O manancial emocional e sentimental que condensa toda uma vida de um imperador é o espaço onde Yourcenar nos coloca ao longo de mais de 300 páginas, deixando-nos a sensação embevecida de que passamos a conhecer Adriano melhor do que nós.

E vida houve onde o sofrimento e a dor conviveram na cadência do tempo com a alegria e a felicidade. “Procuremos entrar na morte de olhos abertos”. Fecha-se, com esta chave de mistério, a história das memórias de Adriano e as memórias da história de Adriano da autora. Tantos e longos anos dedicados à vida deste imperador por parte da vida da Sra. Yourcenar. Ele que, consta-se, havia escrito uma original autobiografia, que todavia não chegou aos nossos dias.

A vida do romance ligou vidas. A de Adriano à de Yourcenar e, por fim, à do leitor. Transplantação de pele. O homem que chefia o império é um de nós. Grande mérito da obra. Fazer sentir a fragilidade humana de um homem-forte tão lá atrás na história.

Memórias de Adriano alonga-nos a personalidade e faz de nós, leitores, diferentes. E a nossa vida só pode agradecer a Yourcenar a transmutação de vidas impressas num mar de palavras vividas e revividas.

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