A morte parece ficção

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A realidade não está pronta para a morte

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Foto de Sabekr

Quando o caixão chegou, eu não estava lá.

Tanto que depois, ao me aproximar e ver o corpo de minha mãe, não acreditei. Neguei. Olhei para a face gesso de pó de maquiagem, a boca cheia de não sei o quê e não pude me convencer. As pessoas ao redor choravam. Meu pai, em voz alta. Fiquei olhando. Parecia assistir a um filme.

Constatei duas coisas. 1) A realidade não está pronta para a morte. 2) A ficção ainda não deu conta da morte.

Veja bem, eu deveria estar preparado. Na minha casa, sempre se fez piada sobre morte. Cresci indo com meu pai a enterros de qualquer pessoa que morresse no bairro – fomos denominados por meu irmão de “papa-defuntos”. Com seis anos de idade, sonhei que ao retornar da escola, encontrava meus pais muito mais velhos. Sempre ficava com as calças na mão quando pensava que eles tinham idade para ser meus avós e, a qualquer momento, podia ficar sozinho. Acrescente-se a isso que passei por uns dois anos de depressão, nos quais em cada coisa que fazia, via uma oportunidade de suicídio – cheguei bem perto disso. Perdi vários parentes. Avós, tios e primos, próximos e distantes. Nunca fui muito afetado.

A não ser até agora. Até ter perdido minha mãe. A vida não prepara a gente para isso. Muito menos a ficção.

Pense em Enquanto agonizo, do William Faulkner. A linguagem de Velho Testamento para uma trama de tons aventurescos sobre uma família que atravessa quilômetros com o propósito de levar uma mãe para ser enterrada. Ou lembre de A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, no  qual o homem acamado enxerga a hipocrisia dos amigos e familiares que cercam seu leito de morte. Ou ainda o satírico romance A morte e a morte de Quincas Berro D’água, de Jorge Amado, em que a morte mais parece uma festa. Livros muito bons.

Mas.

São ficção, imaginação, emoção calculada para tocar as teclas de um piano que prende nossa atenção. Nada tem a ver com a realidade.

Nenhum livro me preparou para encarar a morte de minha mãe. Dizem que o leitor vive várias vidas. Então não vivi a necessária.

Passados alguns dias em que o pó foi devolvido à terra, voltei a ler devagar, catando as palavras. Não quis ficção. Pareceu absurdo devotar tempo nestas leituras. Acabei encarando as Confissões, de Agostinho (o santo, para alguns). E, ao concluir a leitura, vi um livro intimista de um homem que narra sua trajetória de resistência à fé, apesar de sua mãe nunca ter desistido dele.

Um trecho do livro me marcou:

“A vida é fútil, a morte é incerta. Se ela nos apanhar inesperadamente, em que estado partiremos deste mundo? E onde aprenderemos o que aqui negligenciamos? Será que não seremos castigados por essa negligência? E se a morte cortar e puser um termo a todas as preocupações e sentimentos?”

Vivemos por um fio sem nos darmos conta disso. A ficção, nossos sonhos, nossas esperanças servem para desviar nossa atenção da única certeza que temos. Se eu ousasse dizer que há um sentido na vida, diria que está em se doar ao outro, em construir relações, oferecer tudo que se é ao próximo. Tal qual minha mãe sempre fez. Sempre colocou os outros à sua frente.

A vida segue. A ficção continua. A saudade fica.

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