Musas, truques e pudins

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Mas podemos às vezes nos contentar com um singelo pudim

pudim

Ela não precisa apertar a campainha. Subitamente entra no recinto, clareando sua visão e eriçando os cabelos da nuca. E você, surpreendido, abandona até mesmo sua brava missão (liberar espaço na geladeira começando por um pudim quase centenário) para soletrar o nome da visitante: Epi-fa-nia.

Para os gregos, ela podia não ser legião, mas era muitas: as nove filhas de Mnemosine com Zeus. Com o tempo as musas fundiram-se. Suas veias tornaram-se engrenagens. Alguns passaram a chamá-la de Máquina do Mundo. Segundo Camões, Vasco da Gama a encontrou ao fim de suas aventuras. Borges diz tê-la visto (com outro nome) no porão da casa de um amigo, mas ela já deu as caras para certo itabirano numa andança por Minas e o danado a esnobou!

O que ela é senão a consciência de uma coerência radical, interligando todos os aspectos de nossa vida. Senti-la é como contemplar as vísceras da realidade em sua inteireza. Talvez seja uma compensação. Algo para que em seu leito de morte possa confessar com orgulho para seus filhos, netos (com sorte, bisnetos) e amigos: Certo dia, o Universo se abriu para mim! Duas lagartixas foram testemunhas!

Afinal, o fim faz parte do todo. Estranha relação essa que mantemos para com o fim. Evitamos falar dele, mas apenas a nível individual. Como a solidão nos assombra mais que qualquer coisa, o que nos cativa mesmo é o fim coletivo. A foice virá como meteoro ou vírus mortal? Mas o fim que nos interessa aqui tem dimensões e consequências mais humildes (ou não…).

Entre a promessa do escritor e a expectativa do leitor se situa a conclusão do texto literário. Sem dúvida se trata de terreno traiçoeiro, semeado de armadilhas, exigindo o olhar atento dos exploradores. Convém não desprezar o uso dessa bússola chamada intuição (lembrando que “e foram felizes para sempre” não é sinônimo de intuição, mas de acomodação). Ricardo Piglia acrescenta que também é preciso ter alguma malícia. Utiliza os contos de Borges como exemplo: um detalhe, à primeira vista trivial, que aponta para uma história subterrânea que em algum momento se cruzará com aquilo que o leitor julga ser o enredo principal e voilá, a história se encerra.

Em outras palavras, ilusionismo enfeixado em páginas. O autor desvia a atenção do leitor enquanto prepara o último ato do truque. Contudo, muitas cartas escondidas na manga podem atrapalhar. Até o modo de lançá-las ao público precisa ser bem pensado. Lembre-se daquele parente que, ao narrar peripécias de um sujeito, até o momento deste se ver completamente acuado, faz brotar soluções improváveis. “Ué, não tinha mencionado que tinha um bote cheio de armas na margem do rio?” Lembre-se também de não ser como ele.

Perceber que foi ludibriado por um truque (um bom truque) lembra a sensação de experimentar uma epifania. “Então era isso o tempo todo!” Obviedades para as quais negamos um exame mais detido, imersos que estamos na rotina. Nós esperamos ou trabalhamos por um plot twist que tire o amargo gosto dos dias vencidos, mas podemos às vezes nos contentar com um singelo pudim.

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