Na pista com Murakami: Dance dance dance

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O leitor de Dance dance dance, de Haruki Murakami, precisa “ter um espírito mais leve, solto, que possa apenas fluir, entregar-se aos passos da dança.”

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Dance dance dance é um livro tipicamente murakamiano. Apenas para elencar algumas características: 1) título estranho; 2) protagonista com ausência de sentido para a vida; 3) reflexões sobre o que é a realidade; 4) pessoas normais tendo que investigar alguma coisa; 5) encontros com pessoas muito esquisitas; 6) eventos que conseguem ser mais bizarros dos que as tais pessoas esquisitas. Enfim, dá para citar outras caraterísticas, mas vamos ficar com estas.

Mesmo assim, é um livro que merece ser lido.

A partir do título [item 1 da lista acima] pouco se pode presumir da obra. É preciso que se diga que nas obras de Murakami pouco se pode presumir, mesmo ao finalizar a obra [característica não listada]. Não são daqueles livros com finais fechados, como outro texto aqui do site já apontou. Mas voltando a Dance dance dance, o protagonista do livro é uma espécie de jornalista freelancer que, quatro anos após ser abandonado por uma amante em um pequeno hotel, passa a sonhar com ela, vivendo a sensação de que ela o chama de algum lugar, como se pedisse socorro. Ele tem sua vida que até então era letárgica [item 2] sacudida pelo desejo de encontrar esta mulher. Seu ponto de partida é o hotel onde a viu pela última vez, o Dolphin Hotel, que ele por carinho ou desdém chama de “Hotel do Golfinho”. Contudo, ao chegar ao local, é atingido pela irrealidade do que vê [item 3]. Onde há quatro anos existia um pequeno hotel, encontra um empreendimento colossal, operando sob uma lógica capitalista concreta de atendimento de luxo versus alto valor de diárias. O que mais o surpreende, no entanto, é que o hotel tenha o mesmo nome do antigo. Após algumas investigações [item 4], percebe que não pertence ao dono anterior. Ali hospedado, trava relações com uma das recepcionistas, Yumiyoshi [item 5]. Passados alguns dias, a moça relata uma experiência bizarra [item 6] que teve um tempo atrás, no décimo sexto andar. O protagonista repete a experiência em um dia qualquer e acaba se deparando com um velho e assustador conhecido: o Homem-Carneiro.

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Dance dance dance (Alfaguara, 2015)

Neste ponto, se você é um leitor de outras obras de Murakami, poderá se lembrar do livro Caçando carneiros. De certa forma, Dance dance dance é uma continuação da obra citada. Mas como estamos falando deste escritor japonês, ao mesmo tempo, não é. O livro tem outro tom, outra pegada, um enfoque diferente. O personagem pode ser o mesmo, porém as situações são diferentes.

O enredo não é muito claro. Entretanto, a partir do encontro com o Homem-Carneiro, o protagonista tem um vislumbre do que fazer. Parte do que o estranho fala a ele é o trecho abaixo:

“Enquanto a música estiver tocando, você deve continuar a dançar. Entende o que quero dizer? Dançar, continuar dançando. Não deve pensar no motivo e nem no sentido disso, pois eles praticamente não existem. Se ficar pensando nessas coisas, seu pé ficará imóvel. Uma vez parado, já não será mais capaz de agir. Já não restará nenhuma conexão com você. Vai se acabar para sempre, entendeu? Daí, só lhe restará viver unicamente neste mundo. Cada vez mais será sugado por ele. Por isso, não deve parar de mover os pés. Por mais que lhe pareça uma tolice, não deve ligar. Deve continuar dançando, dando passos. Deve ir amolecendo, mesmo que aos poucos, tudo o que estava completamente rígido. Ainda deve haver algo que não esteja perdido. Use tudo o que puder usar. Dê o máximo de si. Não há o que temer.” (pg. 111).

Isso acontece antes que ele encontre dois dos personagens mais importantes para a sequência da obra: Gotanda, um amigo de infância que se tornou um astro de cinema infeliz; e e Yuki, uma menina que é esquecida pela mãe no Hotel do Golfinho, fotógrafa muito famosa, porém ausente em seus deveres maternais.

Embora haja uma série de eventos estranhos, penso que a parte mais “mágica” do livro seja a forma como estes personagens se conectam. Nisso talvez resida a chave para a vivência de quem lê a obra. Exatamente, não para interpretá-la, pois procurar significados determinados pode ser limitador e frustrante. É preciso ter um espírito mais leve, solto, que possa apenas fluir, entregar-se aos passos da dança.

Ler Murakami é encarar situações pesadas, conflitos emocionais densos, mas ainda assim vez ou outra dar uma risada. Seus livros são a prova de que é possível escrever algo metafórico e divertido. Entre inúmeras realidades, saber que não há como fugirmos de nós mesmos e, ainda assim, aprender a observar as coisas de outros ângulos.

Portanto, abra um sorriso e venha para a pista. Dance dance dance. Só isso.

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