Nas águas do Rosa: A terceira margem do rio

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Nas águas do Rosa: A terceira margem do rio
Interpretações da figura do pai que desiste do convívio familiar para viver em um barco, como visto em A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa
Ilustração de A terceira margem do rio, por Gustavo Lacerda

“El río me arrebata y soy ese río.” Jorge Luís Borges

Segundo Alfredo Bosi, no livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, “é patente o fascínio pelo alógico”. O crítico diz que as histórias “são contos povoados de crianças, loucos e seres rústicos que cedem ao encanto de uma iluminação.”

A Terceira Margem do Rio, sexta narrativa do livro, segue essa característica alógica à qual Bosi se refere. O conto é um clássico da literatura nacional e já inspirou até letra de música. Milton Nascimento fez a composição que Caetano Veloso gravou em seu disco Circuladô. Caetano canta: “[…]Risca certeira/Meio a meio o rio ri/Silencioso, sério/Nosso pai não diz, diz:/Risca terceira/Água da palavra/Água calada, pura/Água de rosa dura/Proa da palavra/Duro silêncio, nosso pai.”

A canção sintetiza bem o enredo deste conto que narra a decisão de um pai: construir uma canoa, viver nela, no rio, deixando para trás a mulher e os filhos. Na história, não há indicação de lugar, época, ou nome das personagens, o leitor tem apenas o relato do narrador em primeira pessoa, o filho do “barqueiro”. Nas primeiras linhas, o narrador descreve o pai como um ser normal, porém muito quieto e relembra quando o homem foi viver no rio:

“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: – cê vai, ocê fique, você nunca volte.” (página 32)

E o homem foi e nunca mais voltou, passou a viver entre uma margem e outra, em sua canoa, no meio do rio, próximo aos olhos da família, mas longe de tudo que significasse contato. A terceira margem é o pai, criatura que está além da consciência; uma personagem que marca o limiar entre dois mundos. Quanto a figura do barqueiro na Literatura, Gaston Bachelard, no livro A água e os sonhos, escreve:

“Em particular, a função de um simples barqueiro, quando encontra seu lugar numa obra literária, é quase fatalmente tocada pelo simbolismo de Caronte. Por mais que atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é guardião de um mistério.” (página 81)

Pintura da travessia de Caronte, por Alexander Litovchenko

Esse pai não atravessa o rio, ele se torna uma margem misteriosa e é guardião de um segredo que está além do que a família possa entender. O homem permance nos espaços do rio, no meio, dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais. Tal atitude pasma a a família, os vizinhos, os conhecidos e até mesmo os desconhecidos. Todos cogitavam justificativas que tivessem levado o homem a tomar decisão tão descabida. Uns apostavam em doideira, outros em doença grave,mas ninguém sabia ao certo do que se tratava.
Na história é latente a alegoria do homem e do rio, o que nos leva a relacionar a personalidade do pai a algo que está além do humano, a um passo da eternidade: a alma do pai é tão profunda quanto as águas de um rio, tornando o curso da história bastante metafísico. Em Estranhamento e fruição em A Terceira Margem do Rio, do autor Flávio Gomes, há uma citação de Guimarães que diz:

“[…] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.” ( Revista Literis, n. 2, Rio de Janeiro. UERJ, 2009.).

Aquém das três margens, o filho cuidava do pai. Diariamente, depositava comida num barranco das águas, para que ele não passasse fome. Fazia escondido, embora descobrisse, posteriormente, que sua mãe sabia, mas calara-se sobre os cuidados do jovem. Na casa, o abandono paterno tornara-se assunto proibido. O narrador diz:

“Nós também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e,se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.” (página 35)

Sobre essa morte em vida, sobre essa ausência- presença do barqueiro no âmbito familiar, em Bachelard se lê:

“A Morte é uma viagem e a viagem é uma morte. Partir é morrer um pouco. Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos os rios desembocam no Rio dos Mortos. Apenas essa morte é fabulosa. Apenas essa partida é uma aventura. Se de fato um morto, para o inconsciente, é um ausente, só o navegador da morte é um morto com o qual se pode sonhar indefinidamente. Parece que sua lembrança tem sempre um porvir.” (página 77)

A vida da família fica totalmente abalada por essa partida paterna. Há sofrimento nas palavras, nos gestos; há uma necessidade de compreensão ao que parece ser incompreensível. No decorrer dos anos, os entes vão se afastando. A irmã casa-se, tem um filho e se muda; tempo depois sua mãe vai acompanhá-la. O único que permance ao pé do rio é o filho, como um guardião desse etéreo pai. Depois de anos transcorridos, mirando a canoa, o narrador chama pelo barqueiro, pega um lenço e acena, propondo uma troca: que o pai voltasse para casa e ele fosse viver na barca. Para seu espanto, o velho lhe escuta e faz menção de remar até a margem. O filho, porém, enxerga algo que não lhe parece mais humano, mas sim uma alma. Apavorado, sai correndo, temeroso por ter mexido com coisas do além. Desculpa-se e faz um pedido:

“Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro- o rio.” (página 37)

Assim como o pai, o filho quer como destino o curso das águas. Quer sua canoinha para a travessia; quer renascer em outra margem, em outra vida, renascer e eternizar-se em outro corpo, o rio.

 

Referências:

Bachelard, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix.

Rosa, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro, José Olympio, 1988.

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