O feminino em “Mulheres de Cinza”, de Mia Couto

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O feminino em “Mulheres de Cinza”, de Mia Couto
Após ler Mulheres de cinzas, primeiro livro da trilogia “As areias do imperador”, de Mia Couto, é possível definir o fazer literário do autor com uma palavra: fronteiras

Fronteiras é o termo que melhor define a maestria indefinível desse tecelão de fios historiados. A retratação das fronteiras que Mia Couto faz emergir em suas obras sugerem sempre a sublimação da tranposição. Transpor fronteiras é um desafio a qualquer homem que se utiliza da literatura para acrescentar riquezas ao mundo, para expandir, de alguma forma, a mente do homem contemporâneo, que nunca atravessou tantas fronteiras como agora, mas que também nunca esteve tão preso às fronteiras, visíveis ou não, das limitações impostas ou pelo ego, ou pelo orgulho, ou pelo egoísmo, ou pela corrida em busca do “status quo”, ou pela ideologia e por aí vai.

Mulheres de cinzas tem como pano de fundo a guerra civil-colonial de Portugal e África que, como toda guerra, impõe fronteiras. Sobre a obra, são muitas as fronteiras transpostas até aqui (lembrando que ainda há o restante da trilogia para ser lida), mas vale “demarcar o território não demarcado” da alma feminina e de tudo aquilo que ela pode transpor no mundo. Trata-se de um único ventre, como diz o autor na narrativa, o ventre da mulher e o ventre do mundo.

Narrativa dupla, como só Mia Couto sabe fazer tão bem, alternada entre a voz de uma mulher (Imani, africana) e a de um homem (Germano, português), ambas as vozes apenas dizem, cada uma presa à sua fronteira, o movimento de mundo que as mãos e o espírito feminino nos oferecem.

A primeira superação é a fronteira do corpo: a mulher que supera a opressão que pode significar estar presa a um corpo feminino em uma cultura onde esse corpo pode trazer mais privações do que liberdade. A vontade de ser pó, a vontade de virar cinzas e “desobrigada de ter memória” poderia significar a felicidade momentânea. Superar a imposição que se põe ao corpo feminino é a primeira singeleza.

Depois, a superação de raças: o branco que se apaixona pela negra africana, o soldado português que se apaixona pela jovem aldeã. O amor que não se rende às fronteiras, sejam elas geográficas, de raças ou de guerras.

A superação da morte: os mortos que não morrem. Essa contextualização da cultura moçambicana, em que o respeito pelos mortos como se ainda estivessem vivos e como se ainda conversassem com os que ficaram, retirando da morte o peso sepulcral e deprimente que adquiriu ocidentalizada, ainda que com nuances de conforto e esperanças religiosas. Porque os mortos simplesmente “viram sementes”, que irão germinar grandes árvores e se tornam um com a terra.

Por fim, a superação da ideia de que a memória deixada de lado conscientemente não significa esquecer o que não deve ser esquecido, e sim esquecer para recomeçar. Em Mulheres de cinzas, as mulheres sem nomes que se desfazem com o pó são chamadas a ganhar corpo em todas as raças, cores e lugares, podendo ser eu, você e quem mais quiser refazer o mundo a partir do pó a que as tantas guerras, armadas ou não, reduzem o ser humano.

“Quando voltaram a si tinham perdido a memória, desconhecendo para que serviam as armas que traziam nos braços. Eles então se desfizeram das lanças, zagaias e escudos e olharam uns para os outros, sem saber o que fazer. Até que, perplexos, os chefes rivais se saudaram. A seguir os soldados se abraçaram. E, quando voltaram a olhar a paisagem, não mais viram território para conquistar, mas terra para cultivar.
Por fim, os homens despersaram. No regresso a suas casas, escutaram a mais antiga canção de embalar, entoada nas infinitas vozes de uma única mulher”,  trecho do romance Mulheres de cinzas.

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