O medonho despertar de James Joyce em Finnegans Wake

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Finnegans Wake não pede a nossa compreensão, apenas que a gente se jogue

James Joyce surtando enquanto escrevia Finnegans Wake / Robert Berry
James Joyce surtando enquanto escrevia Finnegans Wake / Robert Berry

Surtei de vez e resolvi ler Finnegans Wake, o ápice criativo (e destrutivo) do irlandês James Joyce. Li sobre essa coisa algumas vezes, e após algumas leituras do Dublinenses, do e sobre o Ulysses, uma leitura do Retrato do Artista quando Jovem e do Finn’s Hotel , achei que poderia trocar uma ideia com esse monstrinho – querer ‘domar’ uma obra do Joyce é uma pretensão alienígena.

Ele é o “livro das trevas” do autor, feito sob medida para um leitor ideal acometido de uma insônia ideal, e vá saber o que mais o próprio disse, além de anos de fortuna crítica dando voltas em torno desse livro medonho. Elaborada durante longos 17 anos – poderiam ter sido 18 só pra combinar com o número de capítulos do Ulysses – e publicada em 1939, dois anos antes da morte de Joyce, foi a última obra do nosso irlandês; mais do que incansável escritor, um incurável desafiador dos próprios limites.

Wake é uma poção em forma de livro, resultado de um caldeirão preenchido com pesquisas exaustivas, muitos (mesmo) trabalhos de recriação e reinterpretação de linguagem, uma quantidade gigante de informações a cada parágrafo, e quase todos os ingredientes aos quais o autor teve acesso. Quase porque alguns ele usou em Ulysses, seu romance anterior, publicado em 1922, e só não repetiu no Wake porque não quis.

Ulysses era mais do que o suficiente. Cada um de seus 18 capítulos tem recursos próprios. Cila e Caríbdis parece uma troca de ideias quase pré-Borges, protagonizada por Stephen Dedalus, protagonista do Retrato do Artista enquanto Jovem, um romance de formação que bastava pra consolidar Joyce como escritor. No Rochedos Errantes acompanhamos 18 personagens andando simultaneamente por Dublin, a poucos parágrafos de distância um do outro. Eólo voa com referências eólicas (me desculpe o péssimo trocadilho), em homenagem a uma entidade alada. E Penélope, o último capítulo, é dedicado a uma das personagens mais legais da literatura: Molly Bloom. Ela que manda nisso, depois de páginas quase como personagem secundária; comece a ler esse capítulo, segura na mão da Molly e vai fundo nesse poderoso fluxo de consciência.

Essa obra também traz de volta mais personagens e referências das anteriores de Joyce, como se integrassem um grande projeto. Não são poucas as pistas largadas nas caminhadas de Leopold Bloom e Stephen Dedalus, a espera de que a gente as perceba e reconheça no capítulo 15 ou 12 um detalhe lá do capítulo 8, (re)descobrindo nesse conjunto temas que não se revelam como são, pois as interpretações são deixadas a nós, leitores.

A soma de virtuosismo técnico e criação de uma forma própria de ver o mundo tornam Ulysses um livro desafiador, até exigente – e discordo que seja difícil, palavra rapidamente atribuída à obra. É uma experiência única e recompensadora de leitura, capaz de ensinar mais do que a gente percebe aprender.

finneganswakeDaí temos Finnegans Wake. Seu enredo e personagens estão completamente diluídos, e há tanto empenho na linguagem dele que as passagens mais complicadas do Ulysses parecem brincadeira de criança. É como se Joyce tivesse pego Circe, o alucinógeno 15 capítulo daquele, injetado doses enormes de anabolizante e criado Wake a partir disso. Não é um livro que peça a nossa compreensão, tampouco nos dá pistas e aguarda que a gente as encontre 50 páginas depois, ainda que seja um pouco mais fácil embarcar nele após ler Ulysses – não se trata se entender ‘um tema’, identificar o narrador ou a suposta intenção do autor, tenha sido ela de sátira ou homenagem a um movimento literário; é pura imersão.

A palavra wake significa despertar, acordar. Muitas passagens de Finnegans parecem um fluxo bagunçado de consciência, a mente de alguém processando as informações acumuladas durante o dia e tentando fazer alguma coisa com elas, sem saber de onde parte e menos ainda pra onde vai. E se soubesse a confusão seria igual, até porque depois de tantos escritos Joyce poderia nos guiar pela mão se quisesse – mas aí não seria James Joyce. Ao mesmo tempo em que ele confia (ingenuamente?) em nossa percepção de leitura, faz questão de derrubar qualquer impressão ao simples virar de uma página.

É um livro ambicioso e difícil, e capaz de provocar ambiguidades – há frases sem enigmas e muitas delas caberiam nas outras obras do autor. E também há partes bem chatas, dessas que se lê e pensa ‘tá, isso aqui é realmente necessário, não precisava mostrar o quanto sabe’ – o que está bem longe de ser exclusividade do Joyce. Ironicamente, justo as características que fazem de Finnegans Wake uma experiência tão impactante, podem também afastar leitores, nem sempre com disposição imediata para um desafio tão grande, ou às vezes intimidados por elas, erguendo barreiras justo em uma obra que se propõe a derrubar as nossas.

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