O mergulho literário de Manoel de Barros

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O mergulho literário de Manoel de Barros

As referências artísticas do poeta Manoel de Barros na música, artes e literatura

Contemplar a obra do poeta Manoel de Barros é um mergulho em uma nova gramática literária, desdobramentos do idioma em neologismos e figuras de linguagem que seguiam as regras da vegetação rasteira do Pantanal matogrossense, absolutamente desvinculados da linguística normativa. O escritor falava de crianças, rios, insetos, de coisas belas, porém, sujas ou malditas. Escrevia sobre o brincar, se sujar, olhar para o céu e deixar-se levar pelo tempo da natureza.

Por muito tempo, o poeta ficou à margem da eferverscência cultural, muito concentrada no Sudeste brasileiro, sobretudo nos anos de 1940 e 1950. Isso se deu também por escolha do escritor, que refugiou-se no Centro-Oeste e passou a fazer a poesia do “des”: desconstruir, desutilizar, desinventar, desabrigar palavras, nomes, ações, desconhecer para reconhecer lugares.

Somente no final dos anos 90, Manoel de Barros passou a figurar entre os grandes da literatura nacional e tornou-se referência no que diz respeito a essa desconstrução de discursos literários, sem regras ou conexão com gênero ou estilo específico.

Considerada nobre ou não, a poesia de Manoel de Barros sempre falou de homens, meninos, as incertezas da vida e da absoluta desconexão com a produção literária contemporânea do autor:

“Entrar na Academia já entrei
mas ninguém me explica por que que essa torneira
aberta
neste silêncio de noite
parece poesia jorrando…
sou bugre mesmo
me explica mesmo
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais que anúncio luminoso?
Qual, sou bugre mesmo
só sei pensar na hora ruim
na hora do azar que espanta até a ave da saudade
Sou bugre mesmo
me explica mesmo:
se eu não sei parar o sangue, que que adianta
não ser imbecil ou borboleta?
Me explica por que penso naqueles moleques
como nos peixes
que deixava escapar do anzol
com o queijo arrebentado?
Qual, antes melhor fechar essa torneira, bugre velho…”

Esse modo particular de ver o mundo e tratar a poesia, de certa forma, esconde um pouco das referências literárias do escritor, que sempre conectou suas frases a referências dos grandes clássicos da literatura ou artistas, sobretudo, da música e das artes plásticas, para falar sobre o que via acontecer no mundo.

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Para refletir sobre a Segunda Grande Guerra Mundial, evocou o pintor Van Gogh, na poesia Os girassóis de Van Gogh. Procurou a paz e a calma de um domingo ensolarado pela manhã nas mazurcas do compositor Frédéric Chopin em Olhos parados – a Mário Calábria. O gosto pela obra de Chopin aparece novamente em Protocolo vegetal.

Fiódor Dostoiévski também faz presença em Aproveitamento de materiais e passarinhos de uma demolição:

“Depois de encontrar-me com Aliocha Karamazoff, deixo o sobrado morto
Vou procurar com os pés essas coisas pequenas do chão perto do mar
Na minha boca estou surdo
Dou mostras de um bicho de fruta”

Em Sabiá com trevas, Manoel de Barros faz uma espécie de diálogo em que o poeta português Fernando Pessoa o ajuda a explicar que poesia é essa que Barros tenta escrever:

“Pedras fazem versos? Pergunta Fernando Pessoa
– Ó Vassily Ordinov, irmão nosso, acaso ervas dão vinho?
E mosca de olho afastado dá flor?
Raiz de minha fala chama escombro
Meu olho perde as folhas quando a lesma
A gente comunga é sapo
Nossa maçã é que come Eva”

Essa “conversa” com outros escritores era constante. De Julio Cortázar diz:

“Cortázar conta que quando alguma expressão lhe queria sujar, ele a camuflava. Assim: espectador ativo virou Hespectador Hativo. Com essas vestimentas de HH, aquele lugar-comum não lhe sujava mais.”

O leitor mais atento à poesia de Barros vai se deleitar com citações de Machado de Assis, Jorge Luis Borges. De François Rabelais falou:

“Por volta de 1532 andava pelas ruas de Paris o doido de Rabelais.
O doido apregoava pregos enferrujados.
Ele sabia o valor do que não presta.
Rabelais chegaria a imaginar assim:
Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos seres apagados.
Ou alguém que possa frequentar o futuro das palavras.
Vendo aquele maluco de rua apregoar pregos enferrujados
O nosso pensador imaginou que talvez quisesse aquele homem
Anunciar as virtudes do inútil.
(Rabelais já havia afirmado antesmente que poesia é uma virtude do inútil.)”

Manoel de Barros viveu 98 anos. Escreveu poesia se utilizando das imagens transcritas em forma de versos. Resgatou o perfeito, o adâmico, um universo de sonhos, e tornou belas as vilezas do chão.

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