O poder da narrativa: A sangue frio, de Truman Capote

0

Numa mescla de ficção e documentário literário, Capote recria de forma dramática e intensa o crime que deu origem ao seu mais famoso livro, A sangue frioRichard Hickock, Perry Smith

Referência e marco indiscutível da literatura norte-americana do século XX, A sangue frio inaugura – ou assim pretendia seu autor – o que se convencionou chamar de romance de não-ficção. Se os textos de Joseph Mitchell e John Reed, entre outros, já adiantavam tal tendência, é Truman Capote quem alarga, e definitivamente, essa trilha. Em texto vigoroso, e que encanta o leitor pela habilidade com que mescla com apuro técnicas ficcionais e jornalísticas,  Capote tematiza algumas das grandes questões da condição humana: solidão, incomunicabilidade, miséria moral. Traz ainda a debate o problema da pena de morte em todas as suas implicações, especialmente no que se refere à legitimação da banalização da vida e à denúncia da inocuidade de um castigo em que se igualam executores e executados.

Em texto de grande força narrativa, assomam, engrandecidas e humanizadas, as personagens – reais – de um aparentemente trivial homicídio ocorrido em uma cidadezinha a extremo oeste do estado americano do Kansas, no já remoto ano de 1959.

“A casa era tremenda com aquele luar”. Assim traduz Perry Smith, um dos assassinos, o impacto que lhe causa o cenário do crime, impacto que já anuncia, em sua força incontrolável, um assassinato igualmente tremendo: amarrados e amordaçados, quatro membros de uma próspera família de fazendeiros são mortos a tiros de espingarda. Ao Sr. Herbert Clutter, marido de Bonnie e pai de Nancy e Kenyon, cabe a violência adicional de ter a garganta cortada. O produto do roubo é ínfimo: entre quarenta e cinquenta dólares. Estimulados pelas histórias fantasiosas de um antigo companheiro de cela – histórias que falavam da existência, na casa dos Clutter, de um grande cofre cheio de dinheiro -, os assassinos, Perry Smith e Richard Hickock, ex-presidiários em liberdade condicional, planejam meticulosamente o assalto; frustrados, contudo, por não encontrarem mais do que um punhado de dólares, liquidam barbaramente a família.

A Sangue Frio é uma obra que suscita grande inquietação: o crime nele narrado exerce, sobre o autor (segundo seu biógrafo, Gerald Clarke), “perversa atração”. Tal atração se estende ao leitor e, envolvendo-o, transforma a leitura em requintado e prazeroso exercício de crueldade, uma vez que os fatos ali apresentados vão desenhando uma realidade espantosa, tornada fascinante pelo recurso a um estilo sóbrio e elegante que reinventa, a cada linha, a arte da escrita e da grande reportagem.

Através de exaustivas entrevistas, de minuciosas pesquisas locais, da investigação de detalhes do crime, do levantamento da vida das vítimas e de seus assassinos (enforcados depois de passarem seis anos no corredor da morte) e do contato pessoal e epistolar do autor com estes, imbricam-se personagens e fatos, conversas de vizinhos e amigos, depoimentos de policiais encarregados do crime, laudos psicológicos e procedimentos jurídicos e legais. Da combinação de todos esses dados o autor extrai a extraordinária matéria com que constrói seu relato; o que seria um aparentemente simples caso de homicídio se transforma em um texto especial pelo tratamento formal que recebe, pela perspicácia e agudeza na interpretação do perfil psicológico dos envolvidos e pela esmerada seleção, avaliação e organização dos fatos.

As pequenas ações realizadas pela família Clutter naquele sábado e os preparativos dos assassinos, que se põem a caminho, são narrados passo a passo e vão convergindo para o desfecho inesperado. Dramática e inapelavelmente delineia-se o encontro com a tragédia: o índice metafórico a anunciá-la é o velho Chevrolet negro que, usado pelos assaltantes, corta velozmente as estradas do Kansas. Consumado o assassinato, descobertos os corpos, altera-se o tom da narrativa – a despreocupada marcha que sublinha a crônica dos acontecimentos corriqueiros de um sábado igualmente corriqueiro ganha acordes sombrios e, a exemplo daquela quietude noturna brutalmente destruída, rompe-se o equilíbrio: o anúncio do crime tira do prumo a pacata e segura vida dos conservadores fazendeiros da região.

A perplexidade que atinge um dos assassinos ante a visão da casa de suas vítimas é tão intensa quanto a que perpassa toda a narrativa, e ganha especial destaque no contraponto que se estabelece entre Perry Smith e Nancy Clutter. Precoce e segura, de caráter firme e possuidora de inúmeros dons, o que a torna admirada por todos, Nancy é a imagem irretocável da jovem bem ajustada e de futuro brilhante. Perry Smith, mestiço, inequivocamente desequilibrado, com mãe e irmãos alcoólatras, inseguro e estigmatizado, e dono, segundo sua própria avaliação, de talentos inaproveitados, é o anti-herói trágico, simples coadjuvante promovido, ironicamente por sua ação mais reprovável, à posição de personagem principal. É a partir do compassivo e minucioso exame desse contraponto que Capote oferece ao leitor a melancólica visão de existências que não se cumpriram, e desvela a amargura do american dream, pondo a nu, e com grande vigor, duas pontas de um sonho controverso.

O que emerge da narrativa e nos envolve é um sentimento agudo de inconformismo e de profundo desconforto face ao desperdício de vidas que se viram brutalmente encerradas. Essa percepção nos fascina, e desperta, a um só tempo, sentimentos de piedade, angústia, perplexidade, compaixão e ternura: a gratuidade do crime e as personagens implicadas tocam-nos, especialmente quando nelas reconhecemos, destacados e ampliados, seres humanos que poderíamos facilmente reconhecer bem próximos a nós.

A sangue frio deixa-nos ainda a sensação intrigante de um mistério não de todo desvendado, a angustiante impressão de que as verdadeiras razões daquele ato cruel permanecerão para sempre incompreensíveis, inatingíveis, inalcançáveis. Trata-se, pois, de um livro obsedante: terminada a sua leitura, volta-se a ele uma vez mais, e outra ainda. Resta-nos, então, rendermo-nos ao seu apelo e, a respiração suspensa, retornar àquela remota cidadezinha do Kansas onde, em noite fria e de lua cheia e brilhante, o vento assovia a canção do carrasco – seis destinos se tocam, e todos os sonhos ecoam uma só certeza: nunca mais.

Não há posts para exibir