O que há em comum entre “Jun Do” e George Orwell

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Jun Do é um personagem fictício que dá título a um livro de Adam Johnson. George Orwell é um escritor que todo mundo conhece ou já ouviu falar.  Jun Do nasceu na Coréia do Norte, George Orwell foi um escritor indiano, embora radicado na Inglaterra, que escreveu obras falando da perversidade dos regimes totalitários que, quer sejam de direita ou de esquerda, guardam semelhanças entre si.

Jun Do nasceu num país comunista, o mais fechado do mundo, e para todos os efeitos era um órfão. Mas na verdade ele tinha um pai. Sua mãe fora sequestrada pelo regime e seu pai era o homem que cuidava do abrigo de órfãos, único trabalho que ele tinha para sustentar o filho e única forma que tinha para ficar perto do filho, mas fora isso, ele devia ser tratado como os demais e também como eles, devia ter um nome de órfão. Jun Do na tradução para o português é “João Ninguém”.

“Jun Do”, de Adam Johnson (Lafonte, 2012)

O nome da casa de órfãos de Jun Do é o Longo Amanhã, um nome bonito, mas não se enganem, é apenas mais um dos disfarces do regime de Kim Jong ll, o Querido Líder. As crianças eram eliminadas aos poucos, submetidas a trabalhos pesados e insalubres e mal alimentadas. Também, conforme a versão oficial, os velhos ao se aposentarem eram enviados para uma linda praia a fim de gozarem um merecido descanso no final de suas vidas. Mas todo mundo sabia que não era verdade, porém ninguém ousava falar nada, era perigoso até mesmo pensar. O Querido Líder se auto proclama um Deus e por toda a cidade se pode ver grandes outdoors com sua foto, que cada cidadão também deve ter em sua casa e reverenciar, e alto falantes espalhados por toda parte repetem sem parar mensagens do Querido Líder e propagandas do regime. É preciso agradecer todos os dias pela cota diária de ração e pela sua benevolência.

Jun Do nasceu num país que parece ter saído do livro que acabou virando filme, 1984, de George Orwell, escrito em 1948, uma distopia que mostra um mundo totalitário onde com a  ajuda da tecnologia, o Estado, o “Grande Irmão”, controla a vida de todos os cidadãos. Convenhamos que a estória foi um tanto profética. Mas um tirano nem precisa de muita tecnologia, basta manter o povo cativo, assustado, com fome, premiar a delação entre os cidadãos, punir alguns para exemplo dos demais e impedi-los de ter contato com outras culturas. O Querido Líder escrevia ele mesmo os livros e os roteiros de filmes da Coréia do Norte, os únicos permitidos.

Depois de uma grande onda de fome durante o inverno e quando acabaram-se as esperanças, o Chefe do Orfanato queimou os alojamentos e restaram apenas doze meninos, que como acontecia com quase todos os meninos órfãos, foram mandados para o exército, e assim foi também com Jun Do, o filho do Chefe do Orfanato. E uma vez no exército, Jun Do devia aceitar a missão que lhe fosse incumbida, e uma delas foi a de Sequestrador Profissional. Sim, lá existia a profissão de Sequestrador assim como a de Torturador, atividades necessárias para a segurança da Nação, devidamente institucionalizadas, porém nas sombras. Reconhecido por sua lealdade e seus instintos apurados, Jun Do passa a chamar a atenção dos superiores do Estado e alcança posições cada vez mais importantes, até partir para um caminho sem volta e cair em desgraça.

Para defender sua dignidade, certa vez Jun Do teve que matar um homem, um criminoso do regime alçado a categoria de herói, e então assumiu sua identidade. Agora ele tinha uma. Mas lá ninguém tem nada seu, nem uma identidade, nem uma história, praticam a lobotomia em massa, o Estado se sobrepõe ao indivíduo e o Estado é a própria pessoa de Kim Jong II, onipresente e onisciente. A mentira, a farsa, são institucionalizadas. Até aí nada tão estranho a todos nós, mas o detalhe perverso é que lá não se pode questionar, muito menos contestar.  Essa necessidade de sobreviver num regime tão hostil, leva a uma resignação por impotência, a uma obediência cega, servil. Nas palavras de Jun Do, “na Coréia do Norte você não nascia:  você era feito.”

Jun Do se calara todo o tempo sobre seu destino cruel e sobre o mesmo destino que havia dado às outras pessoas, e não sabia bem quem era, mas ele não era aquilo, nem aquele lugar.

George Orwell em seu livro 1984 alerta sobre o eminente perigo do poder de controle nas mãos de um indivíduo ou de um grupo.  Em outra obra sua, A Revolução dos Bichos, fica evidente no que se transformam as ideias de igualdade, depois que seus mentores chegam ao poder. A cena alusiva à reunião dos porcos com os humanos continua tão familiar quanto comum.

“Um dia os animais de uma granja no interior da Inglaterra se revoltam contra o tratamento que recebem do dono e liderados pelos porcos fazem uma revolução para se libertar dos humanos e assumir a fazenda. No início tudo parece correr bem, até que saborear o poder começa a produzir seus efeitos: mentiras, trapaças, ganância, assassinatos, acordos com os antigos inimigos, até o ponto de não se saber mais quem era quem.  Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.  Os animais então perceberam que haviam trocado uma tirania pela  outra.”   

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