O que você faria se fosse diagnosticado com um tumor cerebral?

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Passaria a viver tudo que não viveu? Entregar-se-ia à depressão? Acha o tema difícil? Os livros do escritor Julio Pereira atingem o centro desta questão

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O escritor Julio Pereira

Imersos no cotidiano, muitas das vezes vamos empurrando um dia após o outro, vivendo mecanicamente – até que, de repente, tudo muda. Somos diagnosticados com uma doença terminal, um tumor maligno, algo que vai roubar toda a nossa… o que mesmo?

Escrito em Letra de Medico
Escrito em letra de médico (Livrus, 2013)

Isso nos leva a uma frase do livro Escrito em letra de médico, de Julio Pereira, o prontuário de um personagem:

“Lembra-se de poucas coisas da infância, lembra de poucas coisas da adolescência e lembra de poucas coisas de ontem. […] A alma não pode ser avaliada devido às limitações apresentadas.” (pg. 25-26)

Engraçado que a maioria reclame da vida, mas lamente-se tanto ao saber que está correndo o risco de perdê-la (ainda que este risco paire sobre as nossas cabeças diariamente). Diria que este é o tema central dos livros de Julio Ribeiro, a questão da finitude humana. Enquanto em sua primeira obra aqui citada, Escrito em letra de médico, temos vários fragmentos – passando por poemas, contos e crônicas –, no romance Após um tumor cerebral, deparamo-nos com um narrador de voz suave e levemente engraçada ao tratar de um tema tão difícil à maioria das pessoas.

Apos um Tumor Cerebral
Após um tumor cerebral (Livrus, 2015)

Tal como o autor, o narrador de Após um tumor cerebral é um neurocirurgião. A grande diferença é que este personagem fez um autodiagnostico e se deparou com a mesma situação pela qual os seus pacientes passam todos os dias, descobrir-se portador de um tumor maligno. Entretanto, o narrador não se desespera, parece decidir viver uma vida de conformidade. Não que ele seja frio, pelo contrário, em vários momentos, confessa que foge à sua natureza agir com frieza, deixar de se envolver com os pacientes ou tratar uma consulta como um encontro sem emoção. Esta postura vai fazendo com que ao deixar de narrar seu próprio drama, passe a se concentrar em contar não como é seu trabalho, jamais pesando no jargão médico, mas sim aprofundando no que nos torna humanos: nossos relacionamentos. Lidar todos os dias com situações de fragilidade torna-o um observador atento dos comportamentos. Entre os pacientes, dois casos se destacam: o casal Tonho e Ana, cujo diagnóstico do tumor no marido propicia uma série de situações e reviravoltas, além de diálogos bem humorados; e o caso de Angélica, uma jovem que vive em um casamento infeliz e que seu tumor a fez perceber isso.

Redigido em uma linguagem simples, mas não simplista, o romance tem em sua maior riqueza a sensibilidade do narrador – o qual até ensaia uma explicação para sua personalidade: “Nunca quis muito ou esperei muito da vida. […] Tentei poucas vezes explicar isto, mas sempre confundem com tristeza, depressão, e outras palavras que definem alguém como eu” (pg. 81). Mesmo assim, resignando-se, vez ou outra emerge o medo que circula todos os seres humanos. Diante do mistério da morte, trememos. O narrador também tem medo, e isso mais se revela quando ele se relaciona com pessoas mais próximas, como o amigo Hiago, que questiona sua religiosidade, e Angélica, com quem se envolve.

Contudo, após citar brevemente os contornos deste romance, parece-me justo dizer que o foco de Julio Pereira não é falar da morte, mas da vida. Se levada com bom humor, com conversas leves, com amizades que retribuam carinho e atenção (pelo menos, às vezes), tudo pode valer à pena. A morte não precisa ser uma coisa ruim se não passa de uma consequência da vida. Como diz sem grandes dramas um verso de O epidemiologista, do livro Escrito em letra de médico: “Na vida se nasce, quase sempre cresce, geralmente reproduz e sempre adoece e morre” (pg. 38).

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