Série Postais – Grão // Remetente: Alex Andrade, Destinatário: Monique Revillion

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Na série ‘Postais’, um autor envia um cartão a um outro autor, cuja imagem este terá de se inspirar para a escrita de um conto. ‘Grão’, de Monique Revillion, foi baseado na fotografia de Alex Andrade.

Postais Alex

 

Grão

 

Sentiu os dedos entreabertos em sua coxa como a medirem sua textura, depois apertando levemente a carne antes do médico retirar a mão e forçar um meio-sorriso, vamos tentar se levantar devagar? tudo pronto aqui, pode se recuperar na sala de espera, e a enfermeira falando sem parar dentro da tontura da anestesia, faça o favor de se cuidar, queridinha, não espere tanto da próxima vez, pode ser perigoso, enfiando na sua bolsa a receita do antibiótico e a amostra grátis de outro medicamento, depois uma a mais na fila de cadeiras lotada, a secretária procurando horário na agenda para as ligações que não cessam, ela ainda deslizando na névoa injetada na veia fina, agora também com náuseas tentando concentrar-se nas reproduções baratas de Van Gogh, campos de girassóis, a noite estrelada com a moldura solta e o mofo ocupando a lateral direita onde o azul deixou de ser azul e agora é de um indistinto cinza, qualquer coisa para esquecer os vermelhos manchando gazes e compressas, o vidro com a massa rosada e espumosa, o piso sujo, aquilo que escorre por entre suas pernas para o absorvente e que ela sabe que é sangue, fluxos mornos contidos em coágulos como águas-vivas, espera olhando o relógio e no horário acertado desce até o lobby, enxerga sua palidez no espelho da entrada, ampara-se no marco da porta sob o olhar insistente do porteiro uniformizado e aguarda, evitando cair no rio frenético de gente que é a calçada àquela hora, o pai segura o trânsito por alguns minutos em fila dupla até que ela entre e deite-se no banco de trás do carro, deslize sobre o couro do banco até conseguir ajeitar-se, não sabe quem fecha a porta depois de seus pés entrarem, e não se importa, um transeunte, imagina, sempre achou aquela palavra esquisita, o pai nada diz, olha pelo retrovisor a fila de carros e alguém que buzina, não apaga o motor, nem o ar-condicionado regulado sempre no máximo, ela bate os dentes e treme, se pudesse gemeria, mas segura a dor e as cólicas dentro daquele silêncio, engole um soluço tapando a boca com a manga da camiseta, o carro avança e para em repetidas manobras, primeira e segunda marchas marcando o ritmo da irritação coletiva até alcançar a avenida e ganhar alguma velocidade, onde ela vê o motoboy que a encara por trás do vidro escuro do capacete e logo desaparece, depois os telhados dos sobrados antigos, pedaços de outdoors e as copas de árvores atrofiadas, retorcidas e cobertas de fuligem, fecha os olhos e lembra-se do pé de jabuticaba que ela e a mãe plantaram em frente à antiga casa da Rua Chile, quando ainda havia a casa, a infância e a esperança de geleias e alegrias na cozinha morna, mas ela e a jabuticabeira ficaram órfãs no verão seguinte, a árvore secando como a mãe, um fio de gente dentro do caixão imenso, jamais uma única fruta colada ao tronco liso para dar-lhes alegria, até que o caminhão levou numa trombada o que restava, as raízes arrancadas sobre o asfalto, desguarnecidas, sempre achou que cada semente carregava em si seu destino, uma árvore frondosa já traria ali sua história, seu porte e tamanho encapsulados e certos sob a casca espessa daquela promessa, mas nada sabia de solos, ventos, secas, tempestades, que a natureza sabe ser madrasta, que o homem descuida do necessário, e que toda beleza pode ser frustrada, afasta as lembranças com angústia, não quer pensar em grãos, germinações, princípios, muito menos em frutos, agora que o seu havia sido arrancado, sequer nela própria, no que se tornara, e nem na mãe, seria outra dor insuportável, a falta que fazia, o colo que tanto precisava, e não mais teria, pela primeira vez naquele dia o pai a olha, mas seu rosto, como sempre, é uma máscara sem tradução, e de tão raras palavras, aguardando um sinal verde, pergunta se ela pediu recibo do pagamento e resmunga quando ela conta que a secretária riu de seu pedido, recibo só no hospital, queridinha, depois informa que irá buscar Beatriz no trabalho, queria tanto ir direto para casa, deitar-se, tomar um chá quente, ligar a TV e esquecer do mundo assistindo qualquer programa que a arrancasse da consciência, enrodilhada sobre o ventre em chamas, mas seguem até onde está Beatriz, a nova namorada do pai, sempre distraído numa ciranda de parceiras, cada dia mais novas, ela tenta sentar-se para evitar explicações, constrangimentos, mas logo desiste do esforço, sabe o quanto é desimportante para os dois, talvez a moça nem a note e o casal permaneça alheio pelo caminho até o apartamento, entre arrulhos, como sempre, naquela língua de sussurros e vogais com que se comunicam, Beatriz embarca, enche o espaço com seu perfume doce, seguem os três, juntos, até o apartamento, e ela sabe que não passou despercebida quando escuta, desculpa, é tua filha, mas…. vagabundinha, deve dar pra qualquer um, já te contei o que me falaram? ensaia, mas que diferença faria ela protestar, dizer que teve apenas dois namorados? apenas um em sua cama, mas que diferença? nada mais a surpreende, não sente raiva, decepção, dentro e fora do carro tudo parece neutro como se boiasse num oceano de densa, pesada inércia, agora intui que mancha o banco do carro, apalpa e percebe os fundilhos da calça encharcados, a barra da camiseta também molhada, reconhece o cheiro doce nos dedos que leva ao nariz, ainda úmidos, repete para si as palavras do médico a dizer que não haveria mais nenhuma hemorragia, cai a tarde e alguém diz um palavrão na rua, em espasmos, sem nada mais para expulsar, vomita um liquido azedo sobre as mãos em concha, inútil esforço de manter os tapetes limpos, desejando tanto sumir, desaparecer, recolher-se de vez ao fado de desenganada semente, sem mais a possibilidade de um fruto colado ao liso do corpo para dar-lhe alegria, não mais.

 

 

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Monique Revillion nasceu em São Leopoldo (RS), em 1960. Mora em Porto Alegre, onde se graduou em jornalismo. Tem contos publicados em antologias no Brasil e no exterior. Seu primeiro livro, Teresa, que esperava as uvas, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura de livro do ano em 2006. É ainda autora da antologia O deus dos insetos, pela editora Dublinense.

 

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