Resenha: O evangelho segundo Jesus Cristo – José Saramago

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Que se estenda o tapete vermelho da literatura, está a passar por aqui a resenha de uma obra de um destes mestres imortais dos compêndios literários. O nome da vez é José Saramago. Passei a lê-lo a partir deste ano e acabei colocando como meta ler um livro dele por mês, o que acabará rendendo muitas resenhas por aqui.

Se O evangelho segundo Jesus Cristo fosse escrito por qualquer outro autor seria chover no molhado, afinal esta é com certeza uma das histórias mais conhecidas da marcha desgrenhada da humanidade. Mas Saramago tem no seu estilo, uma forma especial de contar histórias, narra acontecimentos com muita paixão e sensibilidade, o que me leva a acreditar que é nestes campos que se separam os grandes dos pequenos.

A proposta do tão contestado livro é apresentar um Jesus mais humano e possível, o que causou e causa até hoje espanto, pois tal ato veio de um ateu declarado. Esta posição fica explícita neste trecho:

O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. (Pág. 65).

Um fato interessante do livro é a pesquisa histórica e social que fica evidente em vários fragmentos do texto, por exemplo:

Não tinha precisado Maria de pedir licença ao marido de viva voz, ele quem lho permitiu ou ordenou com um aceno de cabeça, que já se sabem serem supérfluas as palavras nestes tempos em que um simples gesto basta para matar ou deixar viver, como nos jogos do circo se move o polegar dos césares, apontando para baixo ou para cima. (Pág. 22).

Há de se destacar aqui o cuidado que Saramago teve ao falar de Deus, em nenhum momento teve por objetivo agredir a fé de alguém, tanto que o li tranquilamente, mas construiu cada diálogo do ser supremo carregando de ironia quanto à forma que as pessoas creem cegamente. Mas ele critica várias outras crenças comuns, como o destino neste trecho:

Em algum lugar do infinito, ou infinitamente o preenchendo, Deus faz avançar e recuar as peças doutros jogos que joga, é demasiado cedo para preocupar-se com este, agora só tem de deixar que os acontecimentos sigam naturalmente o seu curso, apenas uma vez ou outra dará com a ponta do dedo mindinho um toque a propósito para que algum acto ou pensamento desgarrados não quebrem a implacável harmonia dos destinos. (Pág. 258).

Enfim, é um livro cheio daquilo que considero a melhor forma de humor, a ironia. Vale a pena ser lido, pensado e até mesmo amado. Sensibilidade e inteligência em mais um livro de Saramago.

Veja mais três citações que gostei do livro:

  1. Deus é tanto mais Deus quanto mais inacessível for… (Pág. 80)
  2. Mas, sendo o pão dos homens aquilo que é, uma mistura de inveja e de malícia, alguma caridade às vezes, onde fermenta um fermento de medo que faz crescer o que é mau e atabafar-se o que é bom, também sucedeu brigarem companhas e companhas, aldeias e aldeias, porque todos queriam ter Jesus só para eles, os outros que se governassem conforme pudesse. (Pág. 273).
  3. …Filho, a ocasião pode sempre criar uma necessidade, mas se a necessidade é forte, terá de ser ela a fazer a ocasião. (Pág. 265).

 Leia também a resenha do livro Ensaio sobre a cegueira.

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