O corpo que pulsa e a voz que estremece em ‘A obscena senhora D.’, de Hilda Hilst

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Hilda Hilst não foi, definitivamente, a típica mulher do interior paulista do começo do século XX

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A poeta e ficcionista Hilda Hilst, falecida em 2004 na então famosa “Casa do Sol”, em Campinas, não foi, definitivamente, a típica mulher do interior paulista do começo do século XX. As escolhas que se permitiu fazer ao longo da vida (a opção por não seguir relacionamentos amorosos tradicionais, pela convivência boêmia em círculos de intelectuais paulistanos, e posteriormente, pela vida pacata do interior) acabam por ser também marcas em sua obra: a intensidade e o afinco com que se dedicava à literatura (publicou, com propriedade, obras de prosa ficcional, poesia, crônicas e dramaturgia) permitem-nos ver, sob diferentes aspectos, todo um universo em que estas questões latejam na mente inquieta, intrigada e intrigante de Hilda. O fantasma da loucura, a busca pelo entendimento do que seria o amor, do que seria a vida, do que seria “Deus”, estão presentes em maiores ou menores nuances desde seu livro Presságio. A maneira com que a autora lidou com estes pontos, ao longo da obra, é diversa e coerente a cada texto, sendo que, cada um deles, a seu modo, nos incita a ter consigo um caso tórrido cuja intensidade é semelhante às paixões que moviam a autora.

A linguagem da Obscena Senhora D. estrutura-se de maneira aparentemente simples: quem enuncia é ela, a Senhora D (Hillé), gozando da liberdade e da solidão de uma senhora (sessenta anos) que, sabiamente (ou loucamente), se preocupa menos com o que a vizinhança pensa dela e mais com o que lhe tomam seus pensamentos. Ao longo de breves narrações sobre os sustos que a “sapa velha”, ou a “Porca” – segundo os vizinhos – causa aos casais, às famílias e, principalmente, às crianças do local, desenvolve-se uma sequência de lembranças, sensações e diálogos com o falecido marido, Ehud. A solidão que a princípio nos é apresentada dura e friamente dissolve-se ao longo da obra e nos deixamos levar simplesmente pelo que a Senhora D. diz. A inocência de memórias de uma infância remota, como as das suas “Baladas”, também convive com o sexo e com o medo da morte, com a velhice e com o fim.

Ehud com vinte? Hillé com quinze? Ehud com cinquenta? Quando foi isso de perdição e luz, isso sem nome, cordão de ouro e fogo cindindo os teus meios, te deitavas terra e viuvez mas Ehud te tocava e viravas barca, incandescência, um grosso aguar, um sol de estupor também escuro e violento. Como era isso de estar sendo hen? isso de estar sendo, tempo vivo, estar sendo (…)

Todo o ritmo de inquietação a que correm as ideias de Hillé inscreve-se sob uma incompletude que claramente não é apenas oriunda da falta causada pelo marido: junto ao corpo incompleto há uma razão incompleta, um não-entendimento das coisas do mundo que dialoga, constantemente, com o espectro do pai. Este, antes de figurar um eixo lógico e radicular de entendimento, é um espelho da incongruência da mente de Hillé com a racionalidade do mundo que a cerca. De maneira muito parecida à de Hilda, o pai em A Obscena Senhora D. é espectro da busca por uma razão e, ao mesmo tempo, da ausência dela:

Hillé, minha filha, boas e vadias e solenes ilusões, movemo-nos pelas ilusões,
gigantescas e fofas, fiquei lupesinando dentro delas e como gostei, Hillé, anos
apenas, mas que deliciosa deixação
as ilusões, pai?
e que desgosto compreender, saber à frente dos passos.
esquizofasia, senhora D, deixa teu pai morrer

As várias interlocuções nos degraus da escada, a incessante e frustrante preocupação com Deus (ou “Este”, ou o “Nome”, ou o “Outro”…), o sexo impulsivo e carnal dos jovens e o afeto terno do casal mais velho entremeiam-se a ponto de não sabermos o quanto da jovem há na senhora e o quanto da senhora é visivelmente perceptível na jovem. A Obscena Senhora D. traz-nos Hilda Hilst em sua mais apurada forma por tornar latentes estes dois aspectos: sua escrita é a mulher em carne viva, que pulsa em desejo e padecimento. Para além disso, ela transpira a angústia de uma mulher que pensa, que procura razões ontológicas para aquilo que lhe aflige, para aquilo que lhe intriga.

Aquela que fala angustia e, ao mesmo tempo, pede mais, pede para que seja lida, que seja devorada, pede para que também seja (in)compreendida e nos ajuda, sem a menor pretensão disto, a nos entendermos. Obviamente, A Obscena senhora D. não é apenas Hilda, não é apenas Hillé. É Hilda, é Hillé e é o medo da senilidade, o medo da decrepitude, o medo da loucura, o medo da morte, a pergunta incessante sobre a natureza do afeto, sobre a natureza do depois, sobre o que é isto a que nomeamos (sabia, ou loucamente) vida.

Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês (…)

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