Similitudes entre um escritor brasileiro e um argentino: a velha dicotomia entre forma e conteúdo.

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Lima Barreto e Roberto Arlt desconstruíram a ideia de que a qualidade do texto está na obediência aos cânones

Lima Barreto e o argentino Roberto Arlt foram escritores que se assemelharam em vários aspectos. Ambos preferiam direcionar seus olhares para o retrato do ambiente marginal em que estavam inseridos. Tanto no Rio de Janeiro quanto em Buenos Aires, eram a eles interessantes pequenos funcionários, prostitutas, ladrões, operários, moradores de cortiços. Também morreram cedo com praticamente a mesma idade (Lima Barreto, 41 anos; Roberto Arlt, 42). E, no que mais interessa aqui, mantiveram um estilo de escrita sem depuração, o que fez deles elementos transgressores à elite literária de suas épocas.

Está posta a questão: até que ponto a fidelidade da escrita ao estilo mais cerimonioso determina a construção de uma literatura de relevância?

O tema assombrou os dois escritores, tanto que não raro se manifestavam expressamente contra a exigência de enquadramento a artificialismos retóricos.

No início de seu romance Os lança-chamas, Roberto Arlt deixou registrado o seguinte: “Dizem que escrevo mal. É possível. De qualquer maneira, não teria dificuldade em citar muita gente que escreve bem e que só é lida por educados membros de sua família. Para fazer estilo são necessárias comodidades, rendas, vida folgada. Mas, em geral, as pessoas que desfrutam desses benefícios sempre evitam o incômodo da Literatura. Ou a encaram como um excelente procedimento para se destacar nos salões da sociedade…”

Lima Barreto não deixou por menos. Perquirindo a real função do escritor, ele se debatia num lugar excluído, muito ao largo do contexto oficial dos letrados: “… Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os cacoetes, a estrutura da frase, não há entre eles um que conscienciosamente procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopeia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas assim…” (Diário íntimo)

Roberto Artlr
Roberto Artlr

O fato é que, se aqui estamos a uma considerável distância desde a morte dos dois escritores em questão, fazendo referência a eles no sentido de destacá-los como autores de grandes produções literárias, é porque o tempo, esse professor de tudo, encarregou-se de demonstrar a força que tem o que se escreve, muito mais do como se escreve. Nesse aspecto, na apresentação do Livro Águas-Fortes Cariocas (Editora Rocco), ao comentar a intenção de Roberto Arlt, em relação a fazer preponderar uma literatura cada vez menos requintada, Gustavo Pacheco assinala: “A posteridade deu razão a Arlt: 70 anos depois de sua morte, é hoje unanimemente reconhecido como um dos maiores nomes da literatura argentina, enquanto seus contemporâneos, com raras exceções, são esquecidos por público e crítica.”

Dessa forma, Lima Barreto e Roberto Arlt desconstruíram o julgamento segundo o qual a qualidade do texto está assentada na absoluta obediência aos cânones de estilo, há na literatura deles uma janela arejada por onde circula a dinâmica da linguagem que inclui gírias e outras variantes populares, abrindo-se espaço para a expressão do que se escreveu. No romance Respiração Artificial, de Ricardo Piglia, um dos personagens diz que “qualquer professora primária pode corrigir uma página de Arlt [e aqui também caberia Lima Barreto], mas ninguém conseguiria escrevê-la.”

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