Sobre memórias imaginadas e ficções vividas em Ricardo Piglia

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Nos liames da literatura, da crítica e da política, a obra de Ricardo Piglia demonstra-nos como a narrativa pode trazer à tona a experiência do desespero, do silêncio e da violência de uma época.

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Em tempos em que a discussão política tem atingido uma parcela consideravelmente maior da população (em grande medida, devido a um cenário exaustivamente classificado como de crise política e econômica) e, principalmente, a tensão de outrora sobre os limites do poder do Estado sobre o arbítrio dos cidadãos paira entre alguns grupos, é interessante nos debruçarmos sobre literaturas que trazem à tona marcas de um trauma político, revisitações a momentos inóspitos à mente, tentativas de palavras sobre o que um dia foi apenas silenciamento.

No seu conhecido ensaio Experiência e pobreza, Walter Benjamin, iniciando uma reflexão sobre a completa nulidade presente nos relatos dos combatentes regressados da Primeira Guerra Mundial, pontua que o desenvolvimento da técnica ao extremo e a aposta na ciência como metas da sociedade estariam tornando o homem cada vez menos humano, um mero item que, como os demais objetos a serviço da tecnologia, estaria obsoleto e substituível com o tempo. Segundo Benjamin, nosso patrimônio cultural só pode fazer sentido quando está diretamente vinculado a nós, à nossa relação com ele, à nossa experiência. Logo, a história só existe e é transmitida porque há o elemento humano nela e, se é verdade que toda arte traz em si a marca de um tempo, também o é que nela está presente uma experiência vivida.

Acredito que esteja aí o potencial político da literatura. Ao discurso literário é consentido o direito de subverter a norma, quebrar a comunicação, burlar o factual e, para muitos autores, esta é a instância na qual seu engajamento é capaz de mobilizar a criticidade do leitor para uma realidade social e política específica. Em consonância com a filosofia benjaminiana, o teatro épico de Brecht é exemplo disto e, não à toa, Brecht é uma das maiores influências em toda a vasta obra do escritor e crítico Ricardo Piglia. A epígrafe de Plata Quemada nos diz muito a este respeito quando evoca um trecho da Ópera dos Vinténs, de Brecht: “O que é roubar um banco, comparado a fundá-lo?”[1]

Piglia viveu e publicou, grande parte de sua vida, sob a inexorabilidade do regime ditatorial que tomou o poder na Argentina em 1966. Em seu livro A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul [2], Paloma Vidal descreve como a literatura de alguns países da América Latina trespassou esse momento de censura, repressão intelectual e violência que se sobrepôs a uma onda de otimismo em relação a um promitente socialismo que era implantado em Cuba. Junto à conhecida concepção do “realismo mágico” de autores como Garcia Márquez, Vidal desenvolve também a ideia do “realismo traumático”, aquele cujo narrar traz à tona a experiência do desespero, do silêncio e da resistência dos que enfrentavam a ignorância de um governo militar.

Tanto a obra crítica quanto a ficcional de Piglia seguem, de certo modo, esta última perspectiva. Em ambas, para além da tônica de reflexão mediante uma conjuntura social, há uma espécie de simbiose entre teoria e literatura, o que reafirma o posicionamento de Piglia em prol de um método “crítico-ficcional” que repercute Borges e inclina-se para a história e a cultura argentinas, especialmente através de diálogos com Macedonio Fernández, Roberto Arlt e Rodolfo Walsh, seu contemporâneo e amigo desaparecido durante o governo militar de 1976 a 1983. Logo, da mesma forma que é impossível deixar de ler o texto crítico Formas Breves com os olhos de quem lê um livro de contos, é também difícil não perceber o caráter crítico em trechos de Respiração Artificial, como este de uma das elucubrações de Marcelo Maggi:

“Depois da descoberta da América não aconteceu mais nada nestes lares que mereça a mínima atenção. Nascimentos, necrológios e desfiles militares: só isso. A história argentina é o monólogo alucinado, interminável, do sargento Cabral no momento de sua morte, transcrito por Roberto Arlt.”

O duplo crítica-ficção de Piglia pode também ser desdobrado em ficção-realidade. O próprio personagem Emílio Renzi, presente em obras como Cidade Ausente, Respiração Artificial, Formas Breves e Alvo Noturno, é nomeado com uma derivação do nome completo do autor, Ricardo Emilio Piglia Renzi. Sabemos que Renzi escreve diários desde muito jovem[3], que muitas de suas histórias assemelham-se às de Piglia e se repetem, se comunicam, ou se completam ao longo dos livros, compondo espécies de “ficções de memórias”. Este movimento permite que o leitor tenha, ao mesmo tempo, um contato íntimo com os relatos de caráter testemunhal, identificando claramente passagens históricas referidas nos textos, e distancie-se dos mesmos assim como o faz com a criação imaginária da ficção. Muito mais do que retratar um quadro crítico de um determinado período da história, trata-se, segundo Piglia, de mobilizar a linguagem para poder, de fato, mostrá-lo: “nada é dito explicitamente, porém, se faz ver, dá a entender, porque persiste na memória como uma visão e é inesquecível.”[4]

Ao jogo de entrar e sair do real, seu texto associa diversos gêneros literários, seguindo uma tendência de ruptura que também vemos em Borges e se relaciona com o princípio de realidade e ficção: junto do romance tradicional, há também a já mencionada crítica literária, o diário, o relato breve típico do conto e o gênero policial. Embaralhando as fronteiras de cada tipo de discurso, Piglia nos mostra como há em todos eles uma dimensão factual e outra fictícia, ou seja, da mesma forma que o diário deixa um pouco da experiência ao materializar-se sob a forma de texto, passando a ser, de certo modo, uma narrativa típica, o romance policial parte de uma investigação sobre qual seria a verdade, o que põe em xeque a própria ideia de verdade dos relatos que o texto nos coloca. A investigação e busca pela verdade corroboram a proposta de distanciamento crítico do leitor e, ao mesmo tempo, os enredos narrados estão inevitavelmente ligados a uma realidade que é reconhecível e cheia de pontos não esclarecidos, sofrimentos silenciados e fatos encobertos, o que nos leva, inevitavelmente, à pergunta: o que realmente aconteceu?

“Os eventos estavam agora tão distantes e tão acabados que pareciam uma recordação perdida na memória de uma experiência vivida. Quase os havia esquecido e eram novos e quase desconhecidos para mim depois de mais de trinta anos. Essa afastamento me ajudou a trabalhar a história como se fosse a história de um sonho.”[5]

Referências:

[1] Trecho do livro “Plata Quemada”: “¿ Qué es robar um banco comparado con fundarlo?”. No Brasil, o livro foi traduzido como “Dinheiro Queimado” e publicado pela Companhia Das Letras.

[2] VIDAL, Paloma. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. Annablume, 2004.

[3] Atualmente comprometido pelas limitações da esclerose lateral amiotrófica, Ricardo Piglia trabalha na organização dos dois volumes restantes dos “Diários de Emilio Renzi”. O primeiro deles, “Los anos de formación” (ainda sem tradução no Brasil), já foi publicado pela editora Anagrama.

[4] Trecho da conferência “Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades)”, dada por Piglia na na Casa de las Américas, Cuba, em 2000. Disponível em: http://jorgealbertoaguiar.blogspot.com.br/2007/02/ricardo-piglia.html

[5] Trecho do livro “Plata Quemada”: “Los acontecimientos estaban ahora tan distantes y tan cerrados que parecian el recuerdo perdido de una experiência vivida. Casi los había olvidado ya y eran nuevos e casi desconocidos para mi luego de más treinta años. Essa lejanía me ha ayudado a trabajar la historia como si se tratara del relato de un sueño.”

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