Tentativas de capturar as tentativas

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Uma tentativa de capturar o ar com um livro

Flávio Izhaki - Fábio Motta/ divulgação
Flávio Izhaki – Fábio Motta/ divulgação

Depois de um tempo como tradutor – principalmente como tradutor literário –, toda leitura que faço é sempre através de lentes tradutórias. Provavelmente é assim com a maioria de meus colegas de profissão; nós lemos quase que traduzindo ao mesmo tempo mentalmente. E – isto talvez seja uma particularidade minha –, em geral, quanto mais difícil o texto me parece ser de traduzir, melhor ele me parecerá. Isso se aplica, a meu ver, especialmente ao caso da literatura. Deixem-me explicar para quem não é da área e talvez não entenda o que quero dizer: o que torna, na maioria das vezes, algo mais difícil de ser traduzido são as inventividades idiomáticas, os trocadilhos, os regionalismos, os duplos sentidos, em suma, o apropriar-se da língua de forma única e pessoal. São esses também alguns dos aspectos que fazem essa profissão ser tão instigante e interessante.

Mas voltando ao assunto em questão, o livro aqui resenhado não me pareceu, a princípio, ser particularmente difícil de traduzir. Claro que toda tradução, ainda mais a literária, tem suas dificuldades, seus desafios; essa não há de ser diferente. Porém minhas lentes tradutórias não detectaram, num primeiro momento, nada incrivelmente problemático. E é aí que quero chegar: apesar disso, este é um livro muito bom. Foge à regra. Em mais de um sentido. Embora à primeira vista simples, apresenta um fio narrativo muito bem trabalho e complexo, que leva o leitor (quem quer que este seja) a colocar suas próprias lentes, sejam elas investigativas, coautorais ou mesmo (auto)biográficas. O texto nos convida a adentrar-lhe as entranhas. A deixar nossa marca nelas, escrevinhando sobre algumas de suas linhas em branco.tentativas-de-capturar-o-ar

A história – tentando não dar muito spoiler – gira em torno do grande Antônio Rascal, um escritor à la Raduan Nassar que, conquanto bem real, tem uma trajetória artística um tanto quanto idealizada, tendo publicado bem poucos livros em vida, dentre eles o melhor romance brasileiro dos últimos tempos, e, desde então, mais nada. Após sua morte, um admirador “estudioso” do escritor, Alexandre Pereira, é contratado para escrever sua biografia, mas morre num acidente de carro antes de conseguir completar a árdua tarefa. O que resta são apontamentos e entrevistas que o biógrafo fizera antes do óbito inesperado. E é isso, junto a trechos inéditos de Rascal, que é publicado sob o título Tentativas de capturar o ar.

Com uma escrita composta por mais de um registro estilístico (em face dos vários “narradores” da trama – cada um deixando sua visão do biografado – se é que há apenas um), numa mistura de diário com suspense policial, com uma boa dose de perscrutação interior, com momentos de delicadeza tocante – como o relato de um primeiro amor –, esta é uma obra que, apesar de talvez apelar mais aos escritores ou interessados no ofício, acho que posso dizer com uma certa segurança, agrada a qualquer leitor.

Flávio Izhaki, em Tentativas de capturar o ar, impressiona por sua maturidade artística, conseguindo inclusive alcançar verossimilhança, na redação dos tais excertos inéditos de Antônio Rascal, com a escrita de um autor consagrado e venerado pela crítica. Ao se lerem esses trechos, crê-se estar de fato diante dos textos de um grande escritor. E não se está?

Aliás, este livro me parece cada vez mais intraduzível.

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