Uma interpretação psicológica de ‘Tubarão’ (o livro, não o filme)

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Clássico do cinema, Tubarão tem em sua versão literária uma história bem diferente e que merece várias interpretações distintas

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“É como se houvesse um maníaco à solta matando pessoas quando estivesse a fim. Você sabe quem ele é mas não pode pegá-lo e não pode pará-lo. E o que é pior, você não sabe por que ele está fazendo isso.” (Pg. 193).

O livro Tubarão, de Peter Benchley – relançado pela editora Darkside este ano, próximo do aniversário de quarenta anos de lançamento do filme homônimo de Steven Spielberg (1975) – é um evento literário. Uma obra escrita em estilo best-seller, com poucos invencionismos de linguagem e muitos diálogos, mas que nos oferece possibilidades interpretativas psicológicas, caso nos atrevamos a ir além da ideia da fera como algo físico.

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Tubarão (Editora Darkside, 2015)

Tanto a versão literária quanto a cinematográfica possuem algumas coisas em comum. A história se desenrola na pequena cidade litorânea de Amity, poucos dias antes do início do verão. Em uma noite qualquer, certa jovem e um rapaz vão até a praia. Ela acaba ficando nua e entra na água para nadar, enquanto ele adormece, bêbado, e acorda somente no dia seguinte. Ao dar-se conta do sumiço, procura a polícia. A denúncia chega até o chefe de polícia Martin Brody, que assume o protagonismo da trama. Nas primeiras horas da manhã, Brody encontra metade do corpo na areia. O legista acusa a causa da morte como “ataque de tubarão”. A medida imediata de Brody é fechar a praia, no entanto isso provoca a revolta de comerciantes locais e do prefeito Larry Vaughan, pois como cidade praiana, a sobrevivência no restante do ano depende do lucro alcançado com os veranistas.

Até este ponto, o livro e o filme são praticamente iguais, mas pouco a pouco passamos a ver as diferenças que cada arte exige. O Tubarão de Spielberg é um filme sobre o grande peixe assassino que assola a praia de Amity. Já a versão de origem, de Benchley, é a história de um homem de meia idade que precisa enfrentar seus problemas, culpas, a chegada da idade, as dificuldades em oferecer à mulher o que ela espera dele, entre outras coisas. Em vários momentos, temos o ponto de vista de Ellen Brody, sua frustração em ter sido uma mulher de família rica, convivendo em um bom meio social, mas que acabou perdendo tudo isso ao se casar com Martin. No processo de ter três filhos, os anos passaram, porém agora que os meninos estavam maiores, começava a dar-se conta de como aquela antiga vida fazia falta. No filme, não temos nada disso. Ellen é apenas a esposa do policial Martin Brody, mais nada.

No romance, então, surge mais um agravante de conflito. A chegada de Matt Hooper. Com as novas vítimas de ataques do tubarão, passam a aparecer interessados no caso, jornalistas, curiosos e o especialista em oceanografia, Hooper. Desde o início, Brody entra em conflito com ele, mas só depois nós, leitores, saberemos que este sujeito é irmão de um ex-namorado de Ellen Brody. Mais do que isso, no desenrolar do romance, além de se posicionar como superior a Martin Brody, por ser um especialista em tubarões, ainda representará a ligação que Ellen procura com seu passado. Uma versão muito diferente do filme, em que Matt Hooper não tem qualquer conexão com Ellen.

Alguém poderia dizer que o filme não tem a mesma profundidade que o livro. Mas a verdade é que cinema é síntese, e Spielberg foi muito bem sucedido em sua versão. Apenas fica claro que são objetivos diferentes. O filme é sobre o tubarão. O livro, sobre Martin Brody.

Mais do que isso, podemos ver na versão literária uma interpretação psicológica. Em Tubarão, a fera pode ser entendida como um símbolo para esta narrativa de tensão transfigurada. O ataque do animal é um reflexo deste homem sem lugar, Martin Brody. Quando a segunda morte acontece, ele se sente culpado e tudo começa a desmoronar. Encontra-se em um beco sem saída, pois não consegue fazer o que é certo, enfrentar a pressão do prefeito e da comunidade local e fechar as praias. A própria chegada do irmão do ex-namorado de Ellen, Hooper, e os confrontos com ele em que Brody se mostra derrotado, são reflexos sobre não conseguir ele também, tal qual sua esposa, lidar com o passado. A situação só se inverte no final da obra, em que junto de um pescador e de Hooper, ele vai atrás do tubarão e encara de frente a fera e seus medos.

Delírio ou não, o fato é que uma obra como Tubarão, de Peter Benchley, com várias possibilidades interpretativas, merece ser lida.

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Martin Brody em uma das cenas finais de Tubarão (1975)

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