Você conhece as narrativas de Antônio Fraga?

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O livro Desabrigo e Outras Narrativas, lançado pela José Olympio Editora, é uma oportunidade para quem ainda não teve contato com os escritos de Antônio Fraga

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Há coisas excelentes por aí que muita gente boa não conhece dentro do campo da literatura brasileira. Antônio Fraga é uma delas. Mas, apesar de não ter o merecido destaque no meio literário atual, não ficou relegado ao esquecimento. Foi enaltecido por pessoas do naipe de: Adriano da Gama Kury, Amir Haddad, Celso Cunha, Carlos Drummond de Andrade, Dionísio Del Santo, Edino Krieger, Mário Lago, Mario Pedrosa, Paulo César Pinheiro, Paulo Mercadante, Vinícius de Moraes, José Louzeiro, Zuenir Ventura, Antônio Callado e Moacir Félix. Até o escritor modernista Oswald de Andrade fez referências elogiosas a Fraga, comparando-o a Guimarães Rosa e Clarice Lispector. João Antônio, também se viu comparado a Antônio Fraga e veio também a elogiá-lo.

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Desabrigo e Outras Narrativas (José Olympio Editora, 2009)

O livro Desabrigo e Outras Narrativas, lançado pela José Olympio Editora na Coleção Sabor Literário, é uma excelente oportunidade para quem ainda não teve contato com os escritos desse carioca genial chamado Antônio da Fraga Fernandes, nascido em 30 de junho de 1916.

Sua mãe Waldomira da Fraga Fernandes e seu pai Justino Fernandes se conheceram no Segundo Congresso Operário Brasileiro ocorrido na cidade do Rio em 1913: ambos apaixonados pelo ideário anarquista. Justino, padeiro, português da cidade do Porto, teria aderido ao Anarquismo ao travar contato com o célebre militante italiano Errico Malatesta (1853-1932) quando este propagava tal ideologia pela península ibérica. A costureira capixaba Waldomira, nascida no município de Caxoeiro do Itapemirim, por sua vez, tornou-se anarquista a partir de seu envolvimento nas lutas trabalhistas travadas no Rio de Janeiro, para onde havia migrado em busca de melhores condições de vida. O casal foi morar na área denominada Cidade Nova, localizada entre Catumbi e Canal do Mangue. E seu filho, que futuramente assinaria apenas como Antônio Fraga, largou a escola – que considerava extremamente chata e inútil –, passando a estudar em casa mesmo, com auxílio dos pais. Acabou desenvolvendo uma forte independência de pensamento. Entre os vários interesses que manifestou dentro da área cultural, o destaque ficou para a literatura, onde realizou obras primorosas.

E a principal criação de Antônio Fraga foi mesmo a novela Desabrigo, escrita entre 1942 e 1943, publicada pela primeira vez em 1945, contendo fortes críticas sociais, ousadias estéticas e afrontas aos beletristas. Não por acaso, essa narrativa impactante é o primeiro texto de Fraga a figurar na atual edição da José Olympio, que conta com apresentação da professora Maria Célia Barbosa Reis da Silva.

Na novela há 24 capítulos dispostos em três partes: “Primeiro Round”, “Segundo Tempo” e “Terceiro Ato”. As gírias surgem aos montes, num primeiro momento até assustando alguns leitores que são levados a se julgarem incapazes de “decifrar” o texto fraguiano. Não há o que temer, ou o que se “decifrar”: a narrativa está ali, direta, crua, sem salamaleques. O contexto vai tornando claro o que poderia parecer hermético. As barreiras que existem para a fruição da novela se dão muito mais por preconceitos linguísticos (da parte de certo público), que de algum caráter obscuro do escrito. Há até um vocabulário explicativo na atual edição (elaborado com base no Novo Dicionário da Gíria Brasileira, de Manuel Viotti), porém sua inclusão no livro não passa de um dado a mais, uma curiosidade para quem se tornar fã da escrita de Fraga. As definições ali apresentadas são absolutamente desnecessárias à leitura da novela, tanto é que nas primeiras edições dela não havia tal glossário, e ninguém sentiu falta.

Depois de Desabrigo, o livro nos oferece Acalanto, texto que o autor dedica a seus filhos “após crescerem”. A competência na linguagem é evidente desde o segmento inicial desta novela, intitulado “O pai dizeu”. A história é narrada por uma menina e reproduz poeticamente a linguagem infantil de maneira primorosa, tratando os verbos todos como regulares e, de um modo mágico, apresentando a alma da criança através de vocábulos e formas de expressão típicos.

A novela seguinte, O Louva-a-deus, se assemelha um pouco à escrita de Franz Kafka, mas com um tom mais explicitamente humorístico. O pequeno inseto que dá título à narrativa vai devorando tudo que vê pela frente. Para esmagá-lo, bastaria uma simples pancadinha dada com uma régua escolar. Mas ninguém faz nada de concreto contra o bicho, enquanto ele come objetos, depois móveis, passando em seguida devorar casas, prédios etc., deixando erguidas apenas as igrejas.

Em O Estofo dos Sonhos (conto que aparece em outros manuscritos com os nomes “O Velório dos Sonhos” ou “O Espaço dos Sonhos”), a personagem narradora tem uma dicção marcadamente diversa do narrador onisciente de Desabrigo, o que se pode atestar, por exemplo, no seguinte trecho do conto aqui em questão: “No jardim, diante da janela, as dálias daquela época refloriam nas dálias do presente; a montanha se erguia nos seus longes, a exibir os mesmos tons de verde; e o arroio serpeava entre as pedras, como sempre, à esquerda do quadro”. Onde as gírias da famosa novela, ou seu característico ambiente sórdido? Fraga não se repete. Sua versatilidade é evidente. Ele não fica preso a si mesmo e a vivências pessoais: acusação injusta que frequentemente pesa sobre autores ditos “marginais” como João Antônio e, sobretudo, Lima Barreto.

Também escrito na primeira pessoa é o conto seguinte, intitulado Crepuscular – narrativa poética em que o pôr do sol em Botafogo espelha o envelhecer do protagonista e as reminiscências da sua infância.

Em O Galante do Jacaré, é contada a história de Hermenegildo, morador de favela cujas aventuras, mais imaginárias que reais, encantam a comunidade a sua volta. Ele, do pico do Morro do Jacaré, vislumbra a cidade e, do alto de sua imaginação, constrói toda uma trajetória fascinante.

O Mensageiro da Noite nos revela um Antônio Fraga sombrio, raramente visto, mas, por isso mesmo, também instigante. E, com esta, se encerram as narrativas do volume, mas não o livro.

Seguem-se ainda dois textos interessantes sobre o escritor: um estudo crítico de Maria Amélia Melo (que saiu originalmente na revista Isto É em 1978) e uma entrevista concedida a Zuenir Ventura, publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 1985.

Para quem se empolgar com a leitura de Desabrigo e outras Narrativas, vale a pena conhecer também a pesquisa Antônio Fraga: personagem de si mesmo, da professora Maria Célia Barbosa Reis da Silva, publicada pela Ed. Garamond.

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Autor do livro de crítica literária Malandragem, Revolta e Anarquia: João Antônio, Antônio Fraga e Lima Barreto (Editora Achiamé, 2005). Em 2011, recebeu menção honrosa no IX Concurso Municipal de Conto – Prêmio Prefeitura de Niterói com "O Anão", posteriormente publicado. Em 2013, obteve menção honrosa no 7º Prêmio UFF de Literatura, com o conto "(Des)encontro", incluído em antologia publicada pela EdUFF. Em concursos de contos do Centro Literário e Artístico da Região Oceânica de Niterói (CLARON) ganhou 1º lugar (em 2016), 2º lugar (2017) e 7º lugar (2018). No Concurso Literário Bram Stoker (contos de terror), foi contemplado com o 10º lugar em 2018.

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