Dez filósofos que apresentaram suas ideias em versos, diálogos e tramas ricas em personagens
Desde o início do pensamento filosófico tal como o consideramos em nossos passos ocidentais, feito por conceitos e intuições que ultrapassam a mera aparência das coisas, há quem escreva ideias através da literatura. Se hoje a filosofia quer sentar-se à mesa dos pesquisadores legitimados por papers e fazer dos filósofos mais cientistas do que poetas, em vários momentos os autores demonstraram suas teses em versos, diálogos e tramas ricas em personagens. Vamos a alguns deles.
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1. Platão
Em um clima de arautos a declamarem memórias épicas e dramaturgos a criarem tragédias que se eternizaram, o filósofo das Ideias escreveu como se pudesse dirigir um espetáculo: debates recheados da ironia de seu mestre e protagonista de todos os diálogos, Sócrates, com a crescente e o clímax de um verdadeiro duelo de palavras. Além das alegorias, como a da Caverna, a do Anel de Giges e a do rio Letter, as conversas em busca de um conceito perfeito possui tramas, paixões, intrigas e ciúmes. O que dizer de O Banquete, com pontos de virada dignas de um romance, como a consulta de Sócrates à sacerdotisa Diotima e a chegada por tumulto de um amante ressentido do filósofo? Se, em A República, o político Platão tenha querido expulsar os poetas, talvez seja apenas para garantir que a poesia filosofasse mais e voltasse…
2. Santo Agostinho
Professor de retórica e boêmio, sai da África para se converter na Itália, aos 36 anos, e se arrepender de seus pecados escrevendo um dos maiores monumentos das letras latinas, Confissões, uma espécie de autobiografia reflexiva em forma de conversa com Deus. Quem diria senão com muita poesia o seguinte trecho: “Eu era infeliz, como infeliz é o espírito subjugado pelo amor às coisas mortais, cuja perda o dilacera, e então deixa perceber a extensão da infelicidade que já o oprimia antes de perdê-las.” Se o formato já é original, as memórias levam Agostinho a pensar sobre o tempo e dar à filosofia uma das primeiras meditações detidas sobre o significado do instante, da duração e da eternidade. Herdeiro de inspirações platônicas, o pensador de Tagaste, atual Argélia, compôs diálogos como O Livre-Arbítrio e edificou utopias como A Cidade de Deus.
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3. David Hume
Conhecido por seus tratados, Hume já ganharia status de cronista só por dizer que todas as especulações metafísicas parecem forçadas, frias e ridículas após um bom jantar e uma partida de gamão. Mas segue além e alcança o posto das letras mais figuradas em seu Diálogo sobre a Religião Natural. Os três personagens Démea, Philo e Cleantes discutem sobre a natureza da existência de Deus. Naturalmente, se nos permitimos o trocadilho, o livro não seria o mais sacro ao vir de um empirista com ares de cético, e seria publicado apenas postumamente, e ainda assim sem o nome do autor da capa. Quem sabe quantas vezes a literatura pode ter sido um meio para os filósofos expressarem mais diretamente as intuições que seriam condenadas em uma argumentação encadeada?
4. Denis Diderot
A questão anterior bem pode servir para esse iluminista francês, um dos agitadores da cultura e das ideias da Paris que guilhotinaria um rei. Editor da Enciclopédia, uma das grandes sistematizações de conhecimentos de nossa história gráfica, Diderot escreveu artigos, cartas e panfletos que lhe renderam a prisão. Censura maior certamente viria com o romance A Religiosa, caso fosse publicada ainda em vida. Neste livro, o enciclopedista dá voz a uma noviça colocada em um convento contra a vontade, que escreve cartas para um marquês a pedir intervenção em seu caso e relatar humilhações. Como o autor de fato só assina o post-scriptum, por muito tempo se debateu se o romance não seria de fato cartas reais e recolhidas que ele decidiu publicar (e, para corroborar, o marquês nomeado na história era de fato seu amigo e havia mesmo uma noviça que lhe escrevia). Entre a ficção e a realidade, literatura certamente é.
5. Voltaire
Este outro iluminista francês é um caso em que a criação literária se tornou mais popular do que a produção filosófica, se é que podemos separá-las de uma maneira tão definida. Afinal, a sua obra-prima, Cândido, parte de uma resposta cômica a uma tese metafísica de Leibniz, a de que viveríamos “o melhor dos mundos possíveis”. O protagonista passa assim todos os azares de tragédia, mas sem alterar o otimismo que lhe permite, miserável e fracassado, ainda dizer: “É preciso cultivar nosso jardim”. Se contarmos mais respostas irônicas a filósofos em nossa lista, ainda podemos citar a carta de Voltaire a Rousseau, quando faz uma devolutiva da teoria do bom selvagem: “Ninguém jamais empregou tanta vivacidade em nos tornar novamente animais: pode-se querer andar com quatro patas, quando lemos vossa obra”. Entre as sátiras, ainda há a excelente compilação de Contos.
6. Schlegel
No primeiro movimento do Romantismo alemão, tivemos, na mesma classe, os irmãos Schlegel, Novalis, Hegel e Goethe. Cada um deles expressou-se pela filosofia e seguiu também a poesia, com exceção de Hegel, que se tornou o mais venerado por seu sistema e não herdou muito do espírito apaixonado das metáforas em sua prosa… Friedrich Schlegel, múltiplo em interesses, incursionou pela crítica literária, linguística, estética e, entre cartas e aforismas, ainda escreveu em 1808 um romance bem moderno para época, Lucinda. A estrutura brinca com os gêneros literários e mistura-os, sem deixar o leitor sossegado, entre poesia e ensaísmo, personagens e críticas. Para escândalo da época, a protagonista Lucinda e o herói Júlio se amam tal como A Maçã de Raul Seixas: “Amor só dura em liberdade/O ciúme é só vaidade/Sofro, mas eu vou te libertar…” Amor livre em pleno início de século XIX!
7. Friedrich Nietzsche
É um dos autores mais estudados no mundo, e mesmo assim há quem inclusive lhe restrinja o título de filósofo. Afinal, se alguns autores namoraram a literatura em alguns momentos, mas em outros escreveram na forma discursiva de um ensaio, Friedrich Nietzsche se expressou com a intensidade de um poeta em toda sua obra filosófica. Com a exceção de A Origem da Tragédia, ainda relacionada a seus tempos na universidade e inspirada em Schopenhauer e Richard Wagner, o “filósofo do martelo” compôs ideias em forma de aforismos e as compilou a fim de se tornarem livros. Obras estranhas para aqueles tempos, o que fez Nietzsche imaginar que sua filosofia seria para o futuro, ainda incluíam poemas, como em capítulos de A Gaia Ciência e A Genealogia da Moral. Em sua obra máxima, Assim Falou Zaratustra, segue ainda além no caminho mágico da literatura: põe nas palavras e nos gestos de um profeta uma nova moral, a ser exposta e confrontada em diversas situações e personagens.
8. Jean-Paul Sartre
Reprima a primeira náusea quem não se iniciou nos caminhos da filosofia contemporânea por meio de um romance de Sartre. Como um bom intelectual francês, Sartre se exprimia por meios dos mais diversos: artigos, ensaios, crítica literária, peças e até mesmo roteiro de cinema, a chegar em famosos tratados e em contos e romances, que incluem O Muro e a Trilogia da Liberdade. A hibridez de seu pensamento é o modus operandi de seus escritos, que na obra filosófica se utiliza de cenas ficcionais, e na produção literária encarna conceitos existenciais com rigor, a exemplo da reação de uma mulher em um jantar romântico ante à investida das mãos do rapaz, na seção sobre má-fé em O Ser e o Nada, ou as alegorias da liberdade, em A Idade da Razão, quando cada um dos personagens é o arquétipo de um modo de ser livre. É o que faz de Sartre uma das figuras intelectuais mais conhecidas do século XX, laureada até com um Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, prêmio que recusou.
9. Simone de Beauvoir
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Eis uma das máximas-pilares do feminismo moderno, cunhada por quem organizou e desenvolveu seu ideário a partir de uma fenomenologia existencialista, em um tratado de estilo delicioso que é O Segundo Sexo. A fluidez da prosa vem das criações romanescas, que já como estreia se revela em A Convidada, a história de um triângulo amoroso entre um casal mais velho e uma estudante recém-chegada em Paris. Se esta, como outras criações ficcionais suas, é hoje tida como expressão muito próxima dos acontecimentos de sua vida, sabemos com certeza que o gênero autobiográfico destacou também Simone de Beauvoir no monde des lettres. Com quatro obras de memórias ao menos, conhecemos a infância, os conflitos da moral e da cultura, a política, a vida de casada com Sartre, e suas impressões particulares pela conturbadíssima França de entre-guerras, Resistência e Maio de 68.
10. Albert Camus
Ainda pelos cafés do Quartier Latin, temos um argelino com dissertação sobre o conterrâneo Santo Agostinho que viajou à França com intenção de ser escritor e professor de Filosofia. O histórico de tuberculose o impediu de assumir uma vaga pública de ensino, mas a sanha de escrever se tornou maior. Já resenhista nos jornais de Árgel, onde inclusive fez críticas ao romance de estreia do então desconhecido Sartre, Camus se tornou jornalista em Paris e logo dramaturgo e ator. Inquieto, publicou livros de crônicas e terminou seu primeiro grande ensaio filosófico, O Mito de Sísifo, aos 28 anos. Por sentir que não compreendiam totalmente suas ideias, escreveu um romance para melhor explicitá-las, O Estrangeiro e ainda a peça Os Justos. No caminho inverso, ao apresentar a peça Calígula e publicar o romance A Peste, sentiu que suas ideias precisariam ser melhor desenvolvidas e explicitadas e fez o longo (e polêmico) ensaio O Homem Revoltado, razão de sua briga com Sartre. Nesses caminhos de ida e de vinda à filosofia, Camus mostrou, mais uma vez na História, que Juan de Mairena, o professor de retórica criado por Antônio Machado na década de 20, estava certo: “Há homens que vão da poética à filosofia; outros que vão da filosofia à poética. O inevitável seria não ir de um ao outro, nisto como em tudo”.