A beleza e o mar Icariano de Bas Jan Ader

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Bas Jan Ader. Descobri este artista por acaso, em um artigo que propõe pensar sua obra, e despertou minha curiosidade.

Jan Ader nasceu em 19 de abril de 1942 – Winschoten, na Holanda. Viveu os últimos dez anos de sua vida em Los Angeles, nos EUA.  É provável que tenha morrido em 1975 entre Cape Cod, Massachusetts e Irlanda, porque seu corpo nunca foi encontrado. Ficou conhecido por seu trabalho em arte conceitual: fotografia, vídeo e performance.

Lendo sobre ele, percebi que Jan Ader era um poeta, mas em vez da escrita, usava outros meios para declamar sua poesia. Talvez ele possa ser tachado de depressivo com tendências suicidas. Mas não se trata aqui de falar sobre depressão ou suicídio, mas da beleza. Sim, da beleza daquilo que em cada um de nós se inicia, passa por um breve intervalo de tempo e se encerra. O artigo que citei tem o sugestivo título de O mar Icariano no processo artístico de Bas Jan Ader.  Digo sugestivo, porque ele desapareceu em alto mar aos 33 anos, e Ícaro na mitologia grega não deveria voar nem muito próximo ao sol para não derreter suas asas e nem muito próximo ao mar para não ser abatido pelas ondas. Jan Ader, porém, parece ter invertido o desejo de Ícaro, e buscado o chão, a gravidade. Para ele nada pode vencer esta força, e mais dia menos dia, cairá. Tudo neste planeta enquanto matéria, massa densa, está preso a este campo gravitacional e tende ao chão. Mas isto não se aplica somente ao que é palpável, mensurável, mas também à dimensão dos sonhos. A queda expõe nossa humana fragilidade, nossa efemeridade.

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É dito que em suas apresentações, Jan Ader  “perdia o controle”, o que fez com que em seu último ato subisse sozinho em um barco de escassos doze pés de comprimento e ficasse à deriva no mar. A comunicação por rádio permaneceu durante três semanas. Tempos depois, o barco foi localizado, mas seu corpo nunca foi encontrado.

Bas Jan Ader, ao contrário de Ícaro que teve suas asas derretidas pelo sol, mas ao mesmo tempo como ele, voou  muito próximo ao mar e foi abatido pelas ondas.

Transcrevo abaixo trecho do texto de Glaucis de Morais:

Tuf

Um som surdo, como um punho que se projeta contra uma almofada de veludo, envolvendo-se de toda a sua maciez. Um ruído abafado percorre do alto da cabeça todas as nervuras do corpo. Uma sensação de peso, de atmosfera e gravidade indica que todos os corpos caem, todas as massas tendem ao chão e essa é a condição de se estar neste mundo: ser matéria densa que se desgasta em atrito e resistência.

Hoje eu vi um pássaro morrer.Que coisa estranha!Veio como um estrondo, rápido e forte, um farfalhar seco no ar. Então, essa massa que já não era mais corpo se encolheu no espaço até se chocar ao chão, para, guardados os restos de algum espasmo, acomodar-se em sua imobilidade. Em uma fração de momento sumiu como pássaro e ficou ali: um pacote disforme, meio plumas, meio carne, meio espanto. Reduzido à condição de uma inócua máquina de voar.Dias tristes esses quando a vida nos alcança com o peso e a velocidade de um tijolo.

– Caí. – resmungou a pomba do meio de seu desaparecimento. Sob o efeito de uma animação de raio, ou do fio condutor do poste de luz, ainda manteve por breves segundos sua consciência de morte.
– Caí, repito! De um céu de puro cinza, no meio da noite, no meio de um clarão. Comigo caíram as luzes de meio quarteirão, depois do estouro do transformador.
– Tudo escuro, meio breu na meia-noite. Até parecia música! E eu ali, caída!
– Não poderia nem dizer que era desperdício, pois tive meus dias de sonhos com janelas abertas. Nem lamentar, pois sempre soube o que era o inevitável, afinal uma pomba não deve viver para sempre!
– Assim, caída de um mau vôo, uma má escolha ou mira. Cisma de equilibrista de fio de alta tensão ou apenas sina de pomba, essa de não ter parada certa, pipocando de um lado a outro até se estrebuchar no chão.

A noite se fez mais escura, como carvão que se desfaz, ainda quente, nas mãos. Deixando para trás uma sensação de poros fechados a calor e pó negro. Sem janelas iluminadas, sem ruídos de televisores, um gato preto me reconhece. Doce alegria de se saber no olhar de um gato estranho. Fortuito encontro, agendado para todas as segundas, quartas, quintas-feiras, às 16h, na virada da esquina.

Desta vez estávamos fora de nosso horário habitual. Ele, miando sem emitir som algum, parecia entender o silêncio do blackout. Eu, voltando de meu passeio noturno, ainda podia ouvir a pomba desfiar seu pequeno rosário sobre a calçada, até se apagar também.

Então, do apartamento logo acima, um som de vidro se quebrando também quebra o silêncio.
Mais um copo a menos.

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