A Bíblia do Che: uma peregrinação em busca do amor e de outros amuletos sagrados

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A Bíblia do Che seria o Graal dos socialistas?

Sanches Neto estaria rindo da caça ao tesouro de seu livro?
Sanches Neto estaria rindo da caça ao tesouro de seu livro?

Depois de propor um passado alternativo para o Brasil, no qual Getúlio Vargas se aliara a Hitler (A segunda Pátria) no intuito de implantar o neonazismo em terras canárias, o que esperar agora de Miguel Sanches Neto com um livro que mistura nomes como Che Guevara, Jesus Cristo e um cara de sobrenome Pessoa? Além do fato de eu já ser um leitor do escritor paranaense, o título do livro, A Bíblia do Che (Companhia das Letras, 2016, 283 páginas), também me deixou bastante curioso e ansioso pela leitura.

Se você é daqueles que odeiam spoilers, cuidado ao ler este artigo! É difícil analisar uma obra sem revelar alguns de seus segredos. Por outro lado, eu acredito que a leitura de um texto literário tem muito pouco a ver somente com a descoberta da trama. Tem muito mais a ver com entrar em contato com a linguagem do autor, vivenciar novas experiências, visualizar novas e inesperadas imagens, proporcionar a si mesmo uma nova visão de mundo, abrindo-se criticamente a um determinado universo etc.

Pois bem, vamos lá! Explorando um pouco o visual do livro, na capa logo se percebe o tom vermelho da revolução e do sangue, juntamente com a estrela de cinco pontas, que representa os cincos componentes da sociedade comunista (os camponeses, os operários, o exército, os intelectuais e a juventude). De fato, a simbologia está presente em toda a obra, explorada ora pelo estilo do narrador, ora permeada na fala das personagens. De fundo, a imagem do rosto do guerrilheiro argentino-cubano. Uma capa que mescla elementos da política, da história e da religião. Qual é a ponte que liga tudo isso?

Quando você começa a ler o livro, logo pensa: Esse cara parece o Lobo da Estepe! É claro que Carlos Eduardo Pessoa (narrador-personagem migrado de um outro romance do autor, A primeira mulher) também é um cinquentão um tanto quanto casmurro, mantendo-se isolado tanto quanto possível da sociedade, pois odeia a vida burguesa e o modo capitalista ao qual as pessoas se entregam de corpo e alma (e é apenas nesse ponto que prefiro compará-lo ao personagem de Hermann Hesse). Mas a leitura vai fluindo e então você percebe que a história tem um enredo intrigante, atual, na qual políticos, lobistas e doleiros disputam o grande espaço sagrado da sociedade brasileira: o poder. E mais, trata-se de um suspense que amarra o leitor entre uma história de amor e uma busca a um objeto sagrado, o que me fez lembrar um pouco O Código da Vinci. A Bíblia do Che seria o Graal dos socialistas?

cheLogo no começo do romance, Pessoa (que sobrenome sugestivo!), ex-professor de literatura, afirma que não deseja ter filhos, não quer deixar herdeiros nesse mundo, retomando a primeira frase de A primeira mulher, onde ele diz: “Sempre me perturbou a ideia de ter filhos”; um assunto que ainda o incomoda dez anos depois. Como não lembrar também de Brás Cubas e sua célebre frase “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. A sensação que se tem é que o protagonista de Miguel também pensa assim. Para ele, o mundo, tal como está, não é digno de receber mais seres humanos. Ou os seres humanos é que não merecem mais habitar esse mundo? Enquanto essa dúvida paira, uma coisa é certa: devido a um trauma passado (explorado com mais profundidade em A primeira mulher), Pessoa sofria antecipadamente a possibilidade de um luto por alguém próximo, doía-lhe a ideia de vir a perder um filho um dia.

O fato é que o professor desempregado se considera alguém insociável (“Eu tinha a sociabilidade de uma moita de espinho”), morava no edifício Asa, em Curitiba, num apartamento onde antes existia o escritório odontológico do Dr. Ubirajara. Entre masturbações e leituras de livros (comprados pela internet e depois doados à biblioteca), seguia a vida exilado, como um ermitão, não se afastando mais de um quilômetro de sua morada. Mas, como uma sombra do passado, Jacinto (um lobista com quem já havia se relacionado em sua primeira aventura), bate em sua porta, impondo-lhe um trabalho que o tirará de sua toca.

A partir de então, os personagens adentram no mundo sujo da política, no qual o professor-investigador Pessoa deverá, utilizando-se de todos os artifícios, encontrar um objeto sagrado para alguém que pagará muito caro por ele: a Bíblia do Che. Reza a lenda que Che teria passado por Curitiba vestido de padre e fizera anotações em uma Bíblia, o que atiçou a curiosidades de seus seguidores.

Com efeito, o livro denuncia sobretudo a hipocrisia existente em nossa sociedade. Colocando o dedo na ferida, Sanches Neto mostra como as pessoas precisam sempre molhar a mão uns dos outros para poderem tirar algum proveito. A propina em troca de algum favor ou simplesmente em troca de seu silêncio. Além disso, o autor também critica o submundo da política, onde as pessoas são capazes de tudo para conseguir o que desejam: “A primeira parcela, paga imediatamente. Dinheiro sem fisco, vindo da sonegação de impostos, da corrupção ou de outros crimes”. É evidente a crítica ao sistema. Contudo, mesmo o mais resistente não consegue deixar de fazer parte dele. Professor Pessoa, que havia se isolado para fugir das engrenagens do mundo – e dos fantasmas que o haviam assolado -, de repente se vê envolto pela máquina.

Dessa forma, subornando um aqui e outro ali, o protagonista vai se readaptando a uma conduta corrupta que, nós também, sobreviventes da grande ficção que é a vida, levamos sem perceber. E a regra é clara: “No mundo da política, todo favor tem um preço. Você recebe algo agora e paga logo em seguida. Quem quebra essa corrente é isolado. Eis a ética dos corruptos”.

O capítulo 17 tem uma característica um pouco diferente dos demais, me chamando a atenção. Como num sonho onde tudo se mistura, o narrador descreve suas sensações utilizando uma linguagem que passeia, ora pelo lirismo, ora pelo erotismo. Quanto à poesia, fez-me lembrar, em algumas imagens, a primeira cena de Lavoura Arcaica, na qual Raduan Nassar descreve um ato de masturbação de forma metafórica. Quanto ao vocabulário mais descarado, me veio à mente Henry Chinaski e suas aventuras sexuais pelas noitadas afora. De todo modo, é um capítulo mergulhado num labirinto – lembranças do tempo de criança do narrador-personagem misturadas a um problema de afirmação de identidade – que foge à trama da obra para adentrar no psicológico perturbado do professor Pessoa, um inconsciente tentando retomar o equilíbrio perdido após anos de reclusão e que, agora, com uma mulher (elemento primordial de reviravolta na narrativa) em sua cama, vê-se obrigado a dar vazão aos seus anseios.

Uma característica marcante dos narradores de Miguel e também presente aqui é o tom poético. Certa vez eu o entrevistei (entrevista completa na Revista Pluriversos) e lhe perguntei como a poesia se dava em suas narrativas, no que ele me respondeu: “Eu penso o romance como uma espécie de resumo de todos os gêneros literários. Então, é imprescindível que nele se manifestem elementos poéticos, não propriamente no formato de poemas. Mas a literatura de ficção que me interessa não está dissociada do olhar lírico, da construção de uma percepção extremamente comovida do ser humano. Pelo romance, a poesia chega hoje a públicos mais amplos. A música popular, algumas décadas atrás, cumpriu este papel de levar poesia a públicos transliterários. Agora, no entanto, a música contemporânea de sucesso é um verdadeiro lixo literário. Cabe então ao romance, ainda com público aberto, tentar manter o verbo poético em permanente ebulição”.

E como bom maringaense que sou, me alegrou a menção a minha cidade na obra. Segundo as pesquisas do professor Pessoa, Che teria passado também por Maringá: “No antigo prédio do hotel Canadá, se é que ele ainda existe, poderia ser colocada uma placa em bronze: ‘Aqui dormiu Che Guevara enquanto preparava a guerrilha no Paraná’”.
Detalhes à parte, de modo geral, a busca pela Bíblia do Che é, de fato, uma peregrinação em busca da consumação de um amor. Para fugir da perseguição política que os ameaçava em Curitiba, pois Jacinto havia sido dado como morto e ambos eram suspeitos, Carlos Eduardo e Celina (ex-amante do lobista, por quem o professor se apaixonara subitamente) viajam à Bolívia. Ele, simplesmente para acompanhá-la, no intuito de protegê-la e ficar ao seu lado. Mas para Celina (agora sob a falsa identidade de Cíntia), a misteriosa fuga simboliza uma via-crúcis, uma peregrinação em direção ao túmulo do homem que, para ela, havia sido um santo. Após a visita ao local onde Che teria sido visto pela última vez, o luto tomou conta do espírito da fã inveterada do revolucionário. Era como se ela tivesse visitado Gólgota e olhado diretamente para a local onde Cristo havia sido crucificado.

Em material cedido ao São Paulo Review, Miguel Sanches Neto conta como foi o processo de escrita de A Bíblia do Che. Revela que escrevera à mão, além do próprio romance, todas as sensações, as ideias, os desafios e o passo a passo na construção do que ele chama de cadernos. Sobre essa experiência, o autor revela que “embora mais trabalhosa, a escrita à mão de um romance talvez produza alterações na estrutura e na linguagem. As cenas vão ficando para trás, não volto a elas, tão preso ao que está sendo narrado. Atraem-me mais as páginas em branco que tenho pela frente do que as já preenchidas. No computador, parece que o texto digitado tem um peso maior e queremos sempre melhorar o que já foi escrito”.

Ao contrário do que possa parecer, não se trata de uma narrativa histórica ou uma biografia, pois, como afirma o escritor paranaense, “Che é apenas um contraponto no romance. Interessa-me o mecanismo de seu culto. O maior herói contra a sociedade de consumo é um objeto vastamente consumido”. Surgido de uma conversa casual, tornou-se um romance policial com uma trama bem amarrada e com um final surpreendente. E para que sua leitura fique ainda mais saborosa, fica a dica de leitura dupla: A primeira mulher e A Bíblia do Che.

Referências:

SANCHES NETO, Miguel. A Bíblia do Che. Companhia das Letras: São Paulo, 2016.
SANCHES NETO, Miguel. A primeira mulher. Rio de Janeiro: Record, 2008.
http://saopauloreview.com.br/miguel-sanches-neto-como-escrevi-o-romance-a-biblia-do-che/

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