A consciência de Cortázar era um tango

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Nessa entrevista, Julio Cortázar fala sobre o fantástico, seu método (ou não) de escrita, entre outros temas

julioJulio Cortázar vivia dançando, improvisando passos nos seus contos ou em sua peça provavelmente mais famosa, O Jogo da Amarelinha, com suas idas e voltas infinitas. Afinal, ele tinha consciência de dança – e conta desse e de outros passos em uma entrevista para Jason Weiss, publicada pela Paris Review em 1984.

Pegamos – ou fomos pegos – uma volta dessa dança e contamos aqui.

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Jason Weiss: Em algumas histórias do seu livro mais recente, Deshoras, o fantástico parece se exceder no mundo real mais do que nunca. Você já sentiu como se o fantástico e o cotidiano estivessem se tornando um?

Julio Cortázar: Sim, nessas histórias tenho sentido que há menos distância entre o que chamamos de fantástico e o que chamamos de real. Nas minhas histórias mais velhas, a distância era maior porque o fantástico realmente era fantástico, e às vezes tocava no sobrenatural. Claro, o fantástico assume uma metamorfose; ele muda. A noção do fantástico que tínhamos da época das novelas góticas da Inglaterra, por exemplo, não tem absolutamente nada a ver com o nosso conceito de hoje. Agora nós rimos quando lemos Os Castelos de Otranto de Horace Walpole – os fantasmas vestidos de branco, os esqueletos que andam por aí fazendo barulhos com suas correntes. Talvez porque a realidade se aproxime mais e mais do fantástico.

JW: Você disse várias vezes que, para você, a literatura é como um jogo. Em quais sentidos?

JC: Para mim, a literatura é uma forma de jogar. Mas sempre adicionei que há duas formas de jogar: futebol, por exemplo, que é basicamente um jogo, e então os jogos são muito profundos e sérios. Quando as crianças jogam, mesmo que estejam se impressionando, elas levam isso muito a sério. É importante. É tão sério para elas como o amor será daqui dez anos. Eu me lembro de quando era pequeno e meus pais diziam, “okay, você brincou o bastante, agora venha tomar banho”. Eu achava aquilo completamente idiota, porque, para mim, o banho era um assunto tolo. Não tinha importância, brincar com meus amigos era algo sério. A literatura é como isso – é um jogo, mas um jogo onde se pode pôr a vida dentro. Se pode fazer tudo por esse jogo.

JW:Quando você se interessou pelo fantástico? Você era muito novo?

JC: Começou na minha infância. A maioria dos meus jovens colegas não tinha senso de fantástico. Eles tomavam as coisas como eram… isso é uma planta, isso é um armário. Mas para mim, as coisas não eram tão bem definidas. Minha mãe, que ainda está viva e é uma mulher muito imaginativa, me encorajou. Em vez de dizer “não você deve ser sério”, ela estava satisfeita que eu estava imaginando coisas; quando me inclinei em direção ao mundo fantástico, ela ajudou me dando livros para ler. Eu li Edgar Allan Poe pela primeira vez quando tinha apenas nove anos. Eu roubei o livro porque minha mãe não queria que eu lesse; ela achou que eu era muito jovem e ela tinha razão. O livro me assustou e fiquei doente por três meses, porque acreditei nele… dur comme feras, dizem os franceses. Para mim, o fantástico era perfeitamente natural. eu não tinha dúvidas. Era como as coisas eram. Quando eu dava esses livros aos meus amigos, eles diziam “não, preferimos histórias de cowboys”. Cowboys eram especialmente populares naquele tempo. eu não entendia isso. eu preferia o mundo do sobrenatural, do fantástico.

JW: Quando você traduziu os trabalhos completos de Poe muitos anos depois, você descobriu coisas novas por conta própria de uma leitura tão próxima?

JC: Muitas, muitas coisas. Explorei sua linguagem, criticada pelo ingleses e pelo americanos, pois eles a achavam muito barroca. como não sou nem inglês nem americano, vejo por outra perspectiva. Sei que alguns aspectos envelheceram muito, que são exagerados, mas isso não significa nada comparado ao seu gênio. Para ter escrito, naqueles tempos, A queda da Casa dos Usher, ou Ligeia, ou Berenice, ou O Gato Negro, qualquer um deles, mostra o verdadeiro gênio para o fantástico e para o sobrenatural. Ontem, visitei um amigo na rua Edgar Allan Poe. Tem uma placa na rua que diz, “Edgar Allan Poe, escritor inglês”. Ele nem era inglês direito! Devíamos ter mudado- vamos protestar!

JW: Na sua escrita, em adição ao fantástico, há calor e afeição reais pelos seus personagens.

JC: Quando meus personagens são crianças e adolescentes, tenho muito afeto por eles. Acho que eles são muito vivos em minha novelas e contos; os trato com muito amor. Quando escrevo uma história em que o personagem é um adolescente, eu sou o adolescente enquanto escrevo. Com os personagens adultos, é outra coisa.

JW: Quais são seus hábitos de escrita? Certas coisas mudaram?

JC: Uma coisa que não mudou, e nunca vai, é a total anarquia e desordem. Não tenho absolutamente método nenhum. Quando me sinto bem para escrever uma história deixo tudo cair; eu escrevo a história. E às vezes quando escrevo uma história, no primeiro mês ou segundo mês que a segue eu escrevo mais duas ou três. Em geral, os contos vêm em séries. Escrever um me deixa em um estado receptivo, e então “capturo” outro. Você vê o tipo de imagem que uso, mas é isso; a história cai dentro de mim. Mas então um ano pode se passar sem que eu escreva nada.

JW: Você é o letrista de um álbum recente de tangos, Trottoirs de Buenos Aires. O que o fez começar a escrever tangos?

JC: Bem, sou um bom Argentino e acima de tudo um porteño – ou seja, um residente de Buenos Aires, porque é o porto. O tango era nossa música, e cresci em uma atmosfera de tangos. Nós os ouvíamos no rádio, porque o rádio começou quando eu era pequeno, e logo após era tango após tango. Tinha gente na minha família, minha mãe e minha tia, que tocava tangos no piano e os cantavam. Pelo rádio, começamos e ouvir Carlos Gardel e os grandes cantores daquele tempo. O tango se tornou parte da minha consciência e é a música que me manda de volta para minha juventude de novo e para Buenos Aires. Então, fui meio que pego pelo tango, tudo enquanto estava sendo bem crítico, porque não ou um desses argentinos que acredita no tango como a maravilha das maravilhas. Acho que o tango como um todo, especialmente perto do jazz, é uma música bem pobre. É pobre mas é bonita. É como essas plantas muito simples, que não se pode comparar a uma orquídea ou a um botão de rosa, mas que têm uma beleza extraordinária em si mesmas. Nos últimos anos, meus amigos tocavam tangos por aqui, o Cuarteto Cedrón são grandes amigos, e um belo tocador de bandoneón chamado Juan José Mosalini – então a gente ouvia tangos, falava sobre tangos. Então um dia um poema me veio assim, que pensei que talvez pudesse ser feito em música, eu não sabia de verdade. E então, olhando meus poemas não publicados (a maioria dos meus poemas não foi publicada), achei alguns poemas curtos que esses amigos poderiam musicar, e eles fizeram. Aliás, fizemos o oposto também. Cedrón me deu um tema musical para o qual escrevi as palavras. Então fiz isso das duas formas.

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Original em inglês (14 paginas) aqui.

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