A face mais obscura da morte

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Em duas obras memoráveis, José Saramago e Orígenes Lessa destroem um dos sonhos da humanidade: a vida eterna.

saramago
José Saramago

Dois escritores de estilos e épocas diferentes trazem em dois de seus melhores livros um tema tabu, talvez um dos maiores da história da humanidade: a morte. A maioria dos seres humanos, religiosos ou não, evita discutir o assunto, e mesmo pensar na morte – na própria ou de alguém próximo. O luto se transformou, inclusive, em algo secreto. A sociedade atual prega tanto o prazer e a felicidade que a tristeza é tida como inexistente, ou deve ser vivida às escondidas.

Na era atual, que prega a uniformidade e a felicidade gratuita em fotos de espelho publicadas em redes sociais, o luto, sentimento individual, é “masturbático”. Ambos os romances, separados por quase sessenta anos, trazem também um sonho que passa pela mente de muitas pessoas: viver eternamente. Quem nunca desejou viver mais do que o nosso corpo pode suportar? Vários filmes e histórias de ficção científica mostram a obsessão humana pela vida eterna. Mas essas obras vão mostrar o impacto social da não-morte e como, no fundo, precisamos dela – por mais que odiemos admitir. E José Saramago e Orígines Lessa tecem com maestria duas narrativas que desestabilizam não só o ser humano, mas como a sociedade em geral abolindo a morte.

Lançado em 2005, As Intermitências da Morte traz a história de um país que milagrosamente não registra mais óbitos. Não se entende inicialmente a causa da interrupção, mas assim que os dias passam e as mortes não acontecem, o país entra em verdadeiro frenesi pelo sonho, que fora de muitos povos desde o primórdio dos tempos, enfim conquistado. O medo da morte imprevista – aquela inimiga que nos tira muitas vezes no melhor momento de nossas vidas, sem esperar a conclusão de um plano, de uma ideia, de um projeto – desaparecera do coração da população com o fim da morte.

Entretanto, se as mortes cessam, os acidentes e doenças continuam freqüentes, fazendo com que as pessoas fiquem em estado de “vida suspensa”. E também as funerárias abrem falência, os hospitais ficam super lotados, as companhias de seguros perdem clientes, há o caos na previdência social e nos asilos, que não têm mais lugar para tantos velhos. Assim, a humanidade se dá conta de que a falta da morte traz graves problemas sociais. E Saramago narra essa anti-epopeia com seu toque de humor, ironia e até mesmo sarcasmo ao descrever o desespero das religiões e do capitalismo com a extinção da morte.

Orígenes Lessa
Orígenes Lessa

Escrito mais de meia década antes da publicação do romance de José Saramago, o livro A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa, escritor conhecido por suas obras infanto-juvenis, já tratava dos mesmos assuntos presentes na obra do escritor português. Um cientista, por meio de experiências que não se explicam durante a narrativa, acaba por suprimir a morte. Pessoas sofriam os acidentes mais terríveis e mesmo assim permaneciam vivas, como o caso de um homem em Nova York que fora à cadeira elétrica e sobrevivera à descarga mortal.

A descoberta da não-morte causou, como no romance saramaguiano, festas e comemorações em todos os cantos. O ser humano sem a morte: é o sonho conquistado. O fervor tomou conta das ruas. Contudo, como na obra de Saramago – aliás, para mim é muito claro que o autor português tenha lido o romance de Lessa, pela semelhança entre as obras –, a sociedade se dá conta dos problemas que se instauram com a falta da morte. Porém, ele vai além, trata ainda da subjetividade e das relações pessoais com a vida eterna. Alguns personagens se divorciam, dizendo que seria impossível viver ao lado de alguém eternamente fazendo sempre as mesmas coisas. A morte passa a ser um anjo venerado.

Em outras sociedades ou até outras épocas da sociedade ocidental, a morte não era venerada, mas sim tratada e encarada de uma maneira um pouco diferente. As pessoas morriam em casa e eram cercadas pela família e por amigos. Choravam e despediam-se na frente de todos. As crianças faziam parte dos ritos, viam a morte de perto. Ninguém a evitava. É claro que se queria viver mais, mas o fato era encarado com mais naturalidade. Porém, o que é se nota é que a não-morte causaria danos não somente em uma sociedade como a nossa, mas em qualquer sociedade em qualquer época.

Segundo Heidegger, face à clarividência da morte, o ser humano descobre sua existência autêntica. Por isso, os dois romances nos transportam para uma mesma realidade: a impossibilidade de um mundo sem mortes. À sua maneira, ambos a apresentam como fadada ao fim e ao caos, não só pelo lado coletivo, mas também pelo indivíduo, que já não viveria uma existência autêntica, uma vez que não teria a morte como parâmetro. Ainda assim não é fácil tratá-la com naturalidade. Mas, lembrando que ela acontecerá, talvez consigamos aproveitar mais a vida, sabendo que é finita sem saber quando acaba, como já dizia o saudoso Renato Russo.

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