Apesar da morte prematura aos 31 anos, Ana Cristina Cesar conseguiu criar um tipo raro de poesia no Brasil
A poetisa Ana Cristina Cesar (1952-1983), pertencente à geração marginal dos anos 70, apresentou um estilo bastante próprio, no âmbito da escrita feminina, que pode ser associado ao de outras autoras, como Clarice Lispector e Katherine Mansfield. Primeiramente, é preciso compreender a proposta do movimento marginal na cultura da época. Avessos a enquadramentos teóricos, os poetas assim intitulados pregavam a liberdade formal para a criação poética, assim como a livre escolha temática, defendendo a articulação entre vida e arte. Num contexto de repressão política, os jovens artistas desejavam fruir os pequenos prazeres cotidianos, o que se refletia em sua produção. Alienados ou revolucionários, antiescolásticos ou fundadores de sua própria escola, os poetas marginais desempenharam papel importante na literatura brasileira, tendo inaugurado uma nova possibilidade de fazer poético. Heloísa Buarque de Hollanda resume:
Assim, os marginais, com um só gesto, desafiaram não apenas a crítica, mas também a instituição literária, oferecendo uma poesia biodegradável que não parecia importar-se nem com a permanência de sua produção, nem com o reconhecimento da crítica informada pelos padrões canônicos da historiografia literária. (HOLLANDA, 2001, p. 160)
Essa aparente consciência da efemeridade de sua obra, ao negar o desejo de permanência no cânone literário, pode ser relacionada ao conceito de “instante-já”, exposto por Clarice Lispector no início de seu romance Água Viva. A narração em fluxo de consciência deseja captar o assim denominado “instante-já”, um presente fluido, que escorre por entre os dedos, e quando percebido já não é mais. Neste poema de Inéditos e dispersos, de Ana Cristina Cesar, também se percebe essa sensação:
A luz se rompe.
Chegamos ao mesmo tempo ao mirante
onde a luz se rompe.
Simultaneamente dizemos qualquer
coisa.
Então dou pique curva
abaixo, volto e brilho.
Mirante extremo onde se goza.
(CÉSAR, 1985, p. 186)
Observa-se que as ações ocorrem ao mesmo tempo: a luz rompe no mirante quando chegam e dizem qualquer coisa. Não há cronologia, tudo se encontra num único momento compactado, num instante-já que o eu-lírico tenta agarrar dando “pique curva” e termina por brilhar também, iluminado pelo mirante. Tudo conflui para o mesmo ato do instante perpetuado no poema. E isso produz um efeito de gozo no eu-lírico. A esse gozo “extremo” ou extremado pela luz do mirante é possível comparar o conceito de “bliss” do conto de mesmo nome da escritora de língua inglesa Katherine Mansfield.
No conto em questão, a protagonista Bertha Young é acometida por uma sensação de alegria súbita e inexplicável, sempre eufórica em relação ao que acontecerá em seguida. Classificada como “bliss” em inglês, a palavra não tem tradução exata, podendo ser entendida como um êxtase, um sentimento de felicidade total; por isso o conto, na versão brasileira, adquiriu o título de “Felicidade”. O efeito, porém, é passageiro, e destina-se a terminar quando a personagem desconfia da traição do marido com uma das convidadas do jantar realizado entre amigos em casa. Ela observa a pereira, que se mantém “imóvel e florida como sempre”, ao contrário de seu estado de espírito inconstante.
Em outro poema de Ana Cristina, “Epílogo” da edição de A Teus Pés, o eu-lírico encena uma performance de ilusionista ao abrir uma valise e passar vários cartões-postais a uma suposta plateia. Em seguida, tece diversos comentários, com referências a filmes, livros, paisagens, viagens. Ao final, notadamente emocionado, utilizando a desculpa clássica do cisco no olho, o eu-lírico se retira apressado, deixando no ar o mistério de onde veio aquele material, de sua própria experiência ou de pessoas com quem teve contato.
O que o eu-lírico ilusionista apresenta é uma série de instantes-já, momentos de bliss interrompidos, dos quais no presente só resta a lembrança. Na verdade, ele alimenta sua própria ilusão e a teatraliza, num espetáculo intimista.
Vão lendo, vão lendo, a maioria está em branco mesmo, com licença.
Eu preciso sair mas volto logo.
Um cisco no olho, um pequeno cisco; na volta continuo a tirar os cartões da mala, e quem sabe, quando o momento for propício, conto o resto daquela história verdadeira, mas antes de sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar desta cadeira.
(CÉSAR, 1997)
A voz poética, em especial pelo ato delicado de colocar e retirar as luvas de pelica e pela emoção contida, parece ser feminina. No entanto, não há adjetivos que o comprovem, torna-se apenas intuição de leitura. A definição do que caracteriza a escrita feminina é bastante complexa. Os eu-líricos de Ana Cristina Cesar são femininos somente pelo fato de ela ser mulher ou se identificar literariamente com outras escritoras, como Clarice Lispector e Katherine Mansfield? A própria poetisa tinha sua opinião sobre o assunto: “Acho que existe sim um tipo de sensibilidade feminina, que é uma sensibilidade caótica, é uma sensibilidade mais sutil, é mais desorganizada. Ela é uma sensibilidade talvez meio histérica. A mulher é histérica por tradição”.
Talvez o mistério que cerca essas questões componha justamente a beleza da poesia. O instante-já em que se lê provoca um efeito de bliss; ainda que efêmero, é válido.
Referências
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1997.
___. Inéditos e dispersos. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 186.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. A Poesia Marginal. In: RODRIGUES, Claufe (org.). 100 Anos de Poesia. vol 2. [s.l.]: O Verso, 2001. p. 159-167.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MANSFIELD, Katherine. Felicidade (Bliss). Disponível em <http://www.releituras.com/kmansfield_bliss.asp>. Acesso em 23/10/2015.